Na primeira década dos anos 2000, um projeto de lei começou a estremecer o status quo. A Lei de Cotas, promulgada em 2012, estabeleceu a reserva de vagas nas universidades públicas do Brasil para estudantes pretos e pardos. Quem estava presente neste momento e não se manteve alheio à discussão, deve lembrar dos argumentos contrários que circulavam entre a classe média: que essas vagas seriam tiradas de pessoas que estudavam muito e que agora cederiam espaço a alunos despreparados.
Quase quinze anos depois, os dados demonstram que a política afirmativa apresenta resultados positivos em todas as esferas, fazendo com que uma boa parte da população chegasse, por fim, ao ensino universitário, transformando a realidade de suas famílias e da vida social do país. Os louros colhidos por essa política, porém, escondem a vivência penosa que os primeiros cotistas enfrentaram ao serem os primeiros dessa leva. E é nessa ferida aberta que o escritor carioca radicado no Rio Grande do Sul Jeferson Tenório toca em seu novo romance, De Onde Eles Vêm (ed. Companhia das Letras, 2024).
Tenório – cuja obra toca no tema racial pelo menos desde o seu livro O Avesso da Pele, que se tornou um best-seller, além de ter se tornado alvo de censura – estava ele mesmo entre os primeiros cotistas: foi um dos primeiros estudantes a entrar por cotas na licenciatura em Letras da UFRGS, em 2010. Aqui, ele parte da sua própria vivência para projetá-la na história ficcional de Joaquim, um estudante que representa muitos outros.
Joaquim vive em um bairro periférico de Porto Alegre e tem uma vida marcada por dificuldades, que se transformam em montanhas que precisa escalar todos os dias. A mãe morreu, e ele divide com a tia os cuidados com a avó que o criou, que sofre de demência. Desempregado, ele consegue uma vaga para cursar Letras. Mas os perrengues iniciam logo no momento em que vai fazer a matrícula e quase é engolido pela burocracia.
Jeferson Tenório coloca então seu protagonista como um símbolo de um não-lugar em que esses jovens negros vivem. Para a burocracia universitária, ele é apenas um número; para a comunidade acadêmica, é um intruso, alguém “sem bagagem” que provavelmente vai atrapalhar o andamento das aulas.
Ao chegar às salas da universidade, Joaquim se sente como um invasor. Entre os colegas, a sensação de desencaixe é permanente. “Num primeiro momento, eles tinham curiosidade sobre mim. Mas, quando descobriam que eu era cotista, eles se tranquilizavam, já presumiam saber tudo sobre mim”, escreve o personagem de Jefferson Tenório.
‘De Onde Eles Vêm’: a realidade agridoce dos cotistas

Tenório é um autor de letra “leve”, que elabora sua narrativa de uma maneira capaz de cativar mesmo os menos habituados à leitura. Eis o “truque” que torna sua escrita tão sedutora: ele aborda assuntos densos e difíceis de uma maneira acessível, que pode envolver inclusive o leitor mais jovem, como se produzisse um livro da Coleção Vagalume dedicado a temas contemporâneos.
É isso o que nos prende à história de Joaquim: trata-se da vida de um sujeito enrolado com inúmeros problemas, ao mesmo tempo em que está preso à própria melancolia. Mas, diferente da maior parte dos seus colegas, o seu sofrimento guarda um problema social, mais que individual.
A acessibilidade de sua escrita, no entanto, revela um tessitura sofisticada das palavras que só é possível aos grandes autores. Talvez empreste à literatura parte da sua experiência como professor, ofício que requisita justamente a capacidade de traduzir assuntos duros e torná-los aprazíveis aos jovens.
E é isso o que nos prende à história de Joaquim: trata-se da vida de um sujeito enrolado com inúmeros problemas, ao mesmo tempo em que está preso à própria melancolia. Mas, diferente da maior parte dos seus colegas, o seu sofrimento guarda um problema social, mais que individual. Jogados à universidade, como se bastasse ter a vaga, os estudantes cotistas permanecem sozinhos. “Eu me sentia solitário, porque na universidade a maioria dos meus colegas cotistas tinham receio ou vergonha de se identificar como cotistas, tinham receio de sofrer algum tipo de retaliação dos professores ou dos próprios colegas. Então ninguém procurava ninguém”.
Logo, a oportunidade recebida se transforma em rancor pelo trabalho de Sísifo que precisa enfrentar todos os dias. O peso cobrado para poder ir às aulas é tão grande que Joaquim está sempre prestes a desistir. “Lembro de ter entrado no curso com tanta vontade. Como se fosse minha única chance na vida. Mas os problemas externos me tomaram de tal maneira que a universidade se tornou grande demais para mim. Na verdade, eu comecei a desenvolver raiva e ao mesmo tempo inveja dos meus colegas que podiam ter crises existenciais, que podiam trancar o curso, ou mesmo desistir dele”, escreve o estudante de Letras.
De Onde Eles Vêm comove exatamente por não ser um romance de grandes arroubos, mas que registra as pequenas tragédias invisíveis perpetuadas pela desigualdade social. Ainda que haja alguns elementos frágeis à narrativa – a história da mãe de Joaquim, que aparece logo na primeira cena do livro, poderia ser melhor resolvida, bem como a trama de alguns personagens secundários – trata-se de uma obra que, de maneira suave, presta um serviço pelo seu potencial de apresentar o leitor a uma vivência que não é sua. Além, é claro, de trazer luz à história dos tantos Joaquins espalhados pelo Brasil, que são engolidos por um discurso meritocrático do que “quem quer, faz acontecer”. O buraco, como Jefferson Tenório nos evidencia, é bem mais embaixo.
DE ONDE ELES VÊM | Jeferson Tenório
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 208 págs.;
Lançamento: Outubro, 2024.
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