Vencedor do Festival de Gramado em 2024, Oeste Outra Vez, longa-metragem dirigido por Erico Rassi, é uma obra singular, que se destaca tanto pelo tom quanto pela forma, e que, sob a aparência de um faroeste caboclo minimalista, revela-se uma poderosa alegoria da crise das masculinidades — especialmente daquela forjada na violência, no orgulho ferido e na incapacidade de afeto.
Ambientado no cerrado goiano, o filme evoca paisagens áridas e inóspitas não apenas como cenário físico, mas como extensão simbólica da aridez emocional de seus personagens. Homens calados, embrutecidos e solitários habitam esse território rarefeito, onde o uso da força não é uma manifestação de coragem, mas, ao contrário, um sintoma de profunda fragilidade. A grande virada de Rassi está justamente em desestabilizar o código clássico do faroeste: aqui, não há honra na vingança, nem nobreza no duelo — apenas o eco vazio de uma masculinidade corroída por seus próprios mitos.
Na trama, Totó (vivido com melancolia contida por Ângelo Antônio) busca vingança após ser espancado por um rival (Babu Santana), com quem sua ex-companheira (Tuanny Araújo) decidiu reconstruir a vida. A mulher, presente em uma única cena, não intervém, não negocia, não se justifica — apenas se afasta. Sua ausência se torna presença constante: ela está em tudo o que falta àqueles homens. O conflito entre os dois não se sustenta por amor ou honra, mas pela tentativa desesperada de reafirmar uma identidade em colapso.
Totó contrata um matador (Rudger Rogério), que fracassa em sua missão. Os dois fogem juntos, formando uma dupla marcada pelo silêncio e pelo fracasso partilhado. O outro lado responde com mais violência: dois pistoleiros (Daniel Porpino e Adanilo) são acionados para persegui-los. Inicia-se, então, uma caçada que, embora marcada pela tensão e pelo risco, jamais se transforma em espetáculo. Longe do tiroteio estilizado dos westerns americanos, Rassi opta por uma encenação contida, em que o silêncio e o vazio dizem mais do que as ações.
‘Oeste Outra Vez’: Guimarães Rosa
O filme evoca “Duelo”, conto de Guimarães Rosa presente em Sagarana, como inspiração. A referência é evidente não só na estrutura narrativa — uma perseguição entre homens em ambiente hostil —, mas sobretudo na atmosfera: Oeste Outra Vez também se situa em um sertão fabulado, onde o tempo é denso, e o realismo cede espaço a um imaginário quase metafísico. É um filme mais interessado em sugerir do que em explicar, em provocar que em entreter.
As falas são rarefeitas, deliberadamente econômicas, como se a linguagem tivesse perdido sua função comunicativa. Os personagens de Rassi vivem num mundo esvaziado de sentido, presos em repetições, inércia e ressentimento. É no não dito, nos gestos truncados, nos olhares desviados, que o filme constrói sua poética do colapso.
A violência permeia cada gesto, cada decisão, mas está longe de ser glamourizada.
As mulheres — ou, mais precisamente, a ausência delas — atravessam toda a narrativa como um fantasma. São evocadas não por desejo, mas por perda. Quando aparecem, são reduzidas a propriedade, a território a ser defendido como se fosse um lote de terra. Ainda assim, a saudade mal disfarçada, o luto não elaborado e o desconcerto diante da rejeição tornam essa ausência ainda mais eloquente. Como se a presença feminina, negada ou ignorada, fosse o que falta para que esses homens reencontrem sua própria humanidade.
A violência permeia cada gesto, cada decisão, mas está longe de ser glamourizada. É uma violência triste, repetitiva, quase patética — como na cena em que os personagens dançam música brega num bar em ruínas, tentando desesperadamente mascarar o fracasso existencial que carregam. O resultado é devastador: Rassi nos conduz a um universo onde a brutalidade é menos uma escolha do que uma sentença.
Com uma fotografia precisa, que traduz em imagem a secura emocional do enredo, e uma montagem que favorece os silêncios e os vazios, Oeste Outra Vez é um filme de contundente beleza formal. Mas sua maior força talvez esteja na denúncia implícita — e por isso mesmo mais poderosa — de um machismo estrutural que transforma homens em espectros de si mesmos. É, ao fim e ao cabo, um lamento e uma crítica: um filme que olha para o interior do Brasil e vê ali, não a bravura mítica dos cowboys, mas o desamparo melancólico de sujeitos que não sabem mais quem são.
Epifânico, necessário, e bom demais.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.