O escritor Raphael Montes consolidou-se como um dos nomes mais relevantes da literatura policial e de suspense no Brasil contemporâneo. Desde Suicidas e Jantar Secreto até a parceria em Bom Dia, Verônica, Montes trabalha com um registro de violência extrema, muitas vezes desconfortável, que não se limita a entreter: busca confrontar, chocar e até provocar repulsa no leitor. Sua escrita encena obsessões, perversidades e psicopatias com uma frieza calculada, transformando o horror em instrumento de reflexão sobre nossos limites éticos e morais.
É nesse território que se insere Dias Perfeitos, romance de 2014 agora transposto para a tela em seis episódios pelo Globoplay, sob direção de Joana Jabace. A minissérie acompanha Téo (Jaffar Bambirra), estudante de medicina solitário, que se apaixona obsessivamente por Clarice (Julia Dalavia). Rejeitado, decide sequestrá-la e obrigá-la a viver ao seu lado, convencido de que, sob a pressão do cativeiro, ela acabará correspondendo a seus sentimentos — além de completar o roteiro de um filme.
A premissa retoma uma tradição universal do suspense e do terror psicológico, de Misery: Louca Obsessão, de Stephen King, a O Silêncio dos Inocentes. Mas, em Montes, o psicopata não é apenas um arquétipo cinematográfico: ele é um produto social, herdeiro direto de uma cultura que naturaliza a objetificação e a violência contra a mulher. Téo encarna o estereótipo do “incel”, o solteiro involuntário que justifica sua frustração afetiva com rancor e agressividade, convencido de que o amor pode ser conquistado pela força.
Na adaptação, a opção de Claudia Jouvin de dividir os episódios em duas perspectivas — a dele e a dela — adiciona camadas à narrativa.
Na adaptação, a opção de Claudia Jouvin de dividir os episódios em duas perspectivas — a dele e a dela — adiciona camadas à narrativa. Quando acompanhamos Téo, os acontecimentos são filtrados por uma lente turva de paixão e delírio; quando vemos pelo olhar de Clarice, o que se impõe é a realidade crua da violência, com sua banalidade perturbadora. É nesse jogo de percepções que a série encontra sua força, ainda que tropece em alguns problemas de verossimilhança e furos narrativos.
O incômodo que Dias Perfeitos pode causar ao público não é acidental. A violência é tratada de modo frontal, sem sutilezas que suavizem o horror. Essa escolha — presente também no romance de Montes — reforça o caráter de choque, que pode espantar espectadores acostumados a thrillers mais convencionais. Há, portanto, uma dimensão ética em jogo: a obra nos obriga a encarar o horror do desejo masculino transformado em cárcere, e a refletir sobre até que ponto a ficção deve tensionar nossos limites de tolerância.
Se não alcança a densidade de Bom Dia, Verônica, cuja primeira temporada expandiu a notoriedade de Raphael Montes ao explorar a violência estrutural contra as mulheres, Dias Perfeitos cumpre a função de testar os limites da ficção seriada brasileira. Ao mesmo tempo em que evidencia a fragilidade de certas soluções narrativas, confirma que o suspense nacional pode dialogar com tradições globais sem perder sua marca própria: o olhar clínico, quase cirúrgico, de Montes sobre o mal-estar contemporâneo.
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