É impossível não pensar no falso curandeiro espiritual João de Deus ao assistir à segunda temporada da série Bom Dia, Verônica, em cartaz na plataforma de streaming Netflix.
No centro da trama desta nova leva de episódios está um falso profeta, Matias Carneiro, vivido por Reynaldo Gianecchini, que, como João Teixeira de Faria, nome de batismo de João de Deus, é um pastor protestante, que promete aos milhares de fiéis que vão ao seu templo a cura para diversas mazelas, físicas e espirituais.
Ao identificar uma mulher vulnerável, por conta de alguma enfermidade, do corpo ou da alma, Matias a convida a se mudar para sua casa, onde ela recebe um tratamento dirigido, especial, que envolve abusos sexuais e psicoemocionais. E com a participação ativa de sua esposa, Gisele, interpretada por Camila Mardila.
O curandeiro religioso torna-se ainda mais perverso, porque seus rituais ocorrem na mesma casa onde também mora sua única filha adolescente, Angela (Klara Castanho), garota frágil e superprotegida que começa a suspeitar que há algo de muito errado acontecendo ao seu redor.
Essa ponta da trama, ainda que não seja exatamente original, é bastante instigante, mas o leitor deve estar se perguntando de forma ela se conecta com a primeira temporada e a protagonista da série, a escrivã Verônica, papel da atriz gaúcha Tainá Müller. Pois, essa conexão, forçada e um tanto rocambolesca, drena muito da potência da trama.
Matias preside um orfanato que tem como padroeiros os santos católicos Cosme e Damião, também relacionados a religiões afro-brasileiras.
O Matias de Gianecchini é uma versão galã sexy e sedutora de João de Deus, o que é questionável em certa medida.
No desfecho da primeira temporada, Verônica descobre uma organização criminosa, preguiçosamente chamada de máfia, que há décadas infiltra seus integrantes no sistema, treinando crianças do orfanato administrado por Matias para que se tornem juízes, delegados, políticos. Todos operam em conjunto num esquema milionário – e diabólico – envolvendo todo tipo de contravenções, que vão do desvio de dinheiro a tráfico humano.
Essa organização está também por trás do caso investigado por Verônica na primeira (e ótima temporada): assassinatos cometidos por um serial killer de jovens mulheres, o policial militar Cláudio (Eduardo Moscovis), que tem como cúmplice a própria mulher, Janete (Camila Morgado), por anos submetida a rotinas de abuso psicológico e físico.
A escrivã tenta ajudar Janete, mas acaba metendo os pés pelas mãos, envolvendo-se mais do que devia e tendo de fingir-se de morta, para sobreviver e continuar investigando as ações dessa rede criminosa, que eventualmente chegará, na segunda temporada, a sua família, que ela tanto quis proteger.
‘Bom dia, Verônica’: trama
Ao tentar criar uma conexão entre o caso do PM psicopata, a organização, o orfanato e, consequentemente, Matias, os criadores da série, o escritor Rafael Montes, autor do livro que deu origem à série (lançado pela Companhia das Letras), e a criminóloga Ilana Casoy, perdem o controle da narrativa.
Os desdobramentos da trama resultam inverossímeis e, em alguns momentos, risíveis até, de tão absurdos, embora a série continue sendo envolvente, bastante por conta da boa direção do cineasta José Henrique Fonseca (de O Homem do Ano), filho do escritor Rubem Fonseca.
O Matias de Gianecchini é uma versão galã sexy e sedutora de João de Deus, o que é questionável em certa medida. O ator segura o papel com desenvoltura. Mas, pelo menos nesta temperatura, o o personagem é menos complexo do que poderia ser – seu passado, que talvez explique sua psicopatia e crueldade, só começa a ser revelado nos últimos episódios, deixando panos para algumas mangas para uma futura continuação.
Klara Castanho, atriz mirim de novelas que chegou à idade adulta com espantosa maturidade dramática, vive a personagem mais complexa da temporada, lidando com temas adultos, como incesto, abuso sexual, orientação sexual. Sua atuação impressiona.
É impossível, contudo, não pensar em tudo que Klara sofreu recentemente, quando o (mau) jornalismo de fofocas brasileiro trouxe à tona o fato de que a jovem atriz entregou um bebê à adoção, após sofrer um estupro e engravidar.
Tainá Müller, que na primeira temporada foi um pouco ofuscada pela premiada atuação de Camila Morgado, vive Verônica com intensidade quase suicida. Verônica segue em sua busca quixotesca, ilusória, por um senso de justiça, que, na vida real, talvez não seja possível. Essa procura poderá continuar em uma terceira temporada. É esperar para ver.
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