Nunca fui um folião. Até simpatizo filosoficamente com o Carnaval. A ideia de que todos tenham a oportunidade de, por alguns dias, soltar seus demônios, esquecer as regras, horários e obrigações, para cair na vida, e viver suas fantasias, ou vesti-las, me parece não apenas justa, mas até saudável. Catarses, coletivas ou individuais, liberam uma energia potente, criadora. Sem falar que a festa de momo é quase indissociável de nossa tradição cultural e brigar com ela sempre me pareceu um inócuo esforço de autonegação – e de certo esnobismo vira-latas. Tenho, no entanto, limitadíssima experiência no assunto, devo confessar.
Sempre folheei com um misto de perplexidade e inveja álbuns de família, muitos herdados por mim, nos quais abundam fotografias de gerações ostentando elaboradas fantasias. Piratas, havaianos, bailarinas, domadores de circo e rumbeiras, todos animadíssimos, saltam das páginas direto para meu imaginário: meus avós, pais, tios e primos dançam ao meu redor, através do século 20, com um certo ar de reprovação e deboche – ou seria piedade? – por eu não ter herdado esses genes dionísicos.
Entre minhas poucas experiências carnavalescas, uma delas me vem à cabeça quando me proponho a mergulhar no túnel do tempo em busca de confete e serpentina. Eu devia, sei lá, ter uns 10, 11 anos, não mais do que isso, quando fui, meio a contragosto, por livre e espontânea pressão de minha avó materna, Hilda, uma entusiasta da festa popular, a honrar a tradição familiar em Paranaguá, sua terra natal e de minha mãe.
Primos que eu não conhecia muito bem, e com os quais mal tivera a chance de conversar, eram animados integrantes de um bloco chamado Vai Quem Quer e, antes que eu tivesse a chance de dizer não, fui sem muito querer parar na avenida, com uma absurda fantasia de chinês.
Quando me dei conta, vestia um túnica amarela ouro de um tecido acetinado, com um dragão verde estampado, e, sobre a cabeça, um chapéu preto, que diziam ser étnico e, portanto, “bem autêntico”, com uma surreal trança preta caindo sobre minhas costas. Para completar meu look sino-parnanguara, colaram em meu rosto, ainda imberbe, um bigode de Fu Manchu, e me deram um instrumento de percussão que, pelo que me lembro, era um agogô.
Com um pouco mais de ano, apareço paramentado com uma elaborada fantasia de palhaço. Não tenho, é claro, qualquer lembrança desse momento, mas a fotografia torna-se incontestável como um teste de DNA e prova que, por mais desgarrado que eu possa ser, venho de uma linhagem de foliões.
Passado o primeiro constrangimento, o fato de estar em uma ala em que todos trajavam a mesma fantasia me deixou, em certo sentido, relativamente à vontade. Era mais um, e essa sensação, que para muitos pode ser desoladora, foi deveras reconfortante ao longo do desfile, que passou diante da janela da casa de minha tia-avó, da qual minha parentada me acenou orgulhosa, como se eu estivesse a cumprir uma missão muito importante. Morri de vergonha. Essa lembrança, ironicamente, hoje tem algo de doce em sua patética singeleza. Muitos deles já não estão mais entre nós.
Desse desfile não restaram, felizmente, provas materiais. Nenhuma foto sobreviveu ao tempo. Acontece que em minha prospecção histórico-carnavalesca, emerge uma imagem minha que atesta a gigantesca importância da festa de momo em minha família.
Com um pouco mais de ano, apareço paramentado com uma elaborada fantasia de palhaço. Não tenho qualquer lembrança desse momento, mas a fotografia torna-se incontestável como um teste de DNA e prova que, por mais desgarrado que eu possa ser, venho de uma linhagem de foliões. De repente, o tal gurizinho salta do álbum e se junta ao resto da turma, e me acena, pedindo licença para se perder no salão. E consinto, ainda que relutante.