A vingança, reza o ditado popular, seria um prato que se serve frio. Provavelmente porque, assim, teria um efeito surpresa, cumprindo sua missão justiceira. Mas ela também tem seu preço, e acaba por envenenar quem a persegue a qualquer custo. Pode ser um copo de cólera, amargo e suicida, enfim. Mundo Cão, novo longa-metragem do diretor curitibano Marcos Jorge, do premiadíssimo Estômago (2007), é um instigante, ainda que também irregular, híbrido de thriller e comédia de humor negro que discute, sobretudo, o poder intoxicante do poder, materializado em atos de violência, especialmente quando ele pode ser trocado de mãos, sob a forma de atos vingadores.
Há dois polos no filme de Jorge, com roteiro do cineasta e de Lusa Silvestre. De um lado, um funcionário do Departamento de Controle de Zoonoses da prefeitura de São Paulo, Santana (Babu Santana, ótimo); do outro, um ex-tira corrupto, agora rei do jogo ilegal, Nenê (Lázaro Ramos, também em notável desempenho). Com base nessas duas figuras, o cineasta promove uma discussão sobre o descontrole da segurança em espaços urbanos. O primeiro é o chamado “homem de bem”, cumpridor de seus deveres, enquanto o segundo representa o desvio, a contravenção. Nenhum deles, contudo, é apenas o que aparenta: são complexos, matizados. O herói pode ser cruel enquanto o suposto vilão também é capaz de atos generosos, revelando até certa doçura.
Nessa recusa de um maniqueísmo simplificador, já presente em Estômago, está um dos maiores trunfos de Mundo Cão. Bem e mal não são opostos, mas de certa forma indissociáveis.
Santana é um homem do povo, que vive uma rotina de harmonia e cumplicidade com a mulher, a evangélica Dilza (Adriana Esteves), e os dois filhos, uma adolescente e um garoto às portas da puberdade. Levam uma vida simples, porém não arquetípica: ela costura calcinhas para vender enquanto ele tem um quarto com isolamento acústico improvisado, onde pratica solos de bateria, instrumentos que toca nos cultos, embora desdenhe da religião da esposa.
O interessante em Mundo Cão é que Jorge se nega a contrapor classes sociais ou paisagens urbanas.
O destino atropela Santana quando, em uma ação cotidiana, ele participa do sacrifício de um rotweiller bravo, encontrado solto em um pátio de escola. Era um dos bichos de estimação de Nenê, que usa seus cães como armas, para intimidar, ferir e até mesmo assassinar seus desafetos. Quando descobre que o servidor municipal teria autorizado a morte do seu cão, ele resolve se vingar: sequestra o filho do homem. As portas do inferno, então, se abrem.
O interessante em Mundo Cão é que Jorge se nega a contrapor classes sociais ou paisagens urbanas. Embora Nenê seja um homem enriquecido pela contravenção, o universo que ele habita é contíguo à geografia de Santana. Ambos são afrodescendentes e não têm um abismo que os separe. É uma opção corajosa em um país tão artificialmente polarizado por ideologias de ocasião como o Brasil. A vingança da qual o filme trata não é de ordem social, mas existencial, moral.
Ao transitar entre comédia, thriller e até mesmo o melodrama, o filme por vezes parece indeciso: por exemplo, o apelo dramático do retorno do filho de Santana para casa após o sequestro se esvazia por conta de uma trilha sonora ruidosa, nada sutil, que também atrapalha outros momentos da trama. Mas esses são deslizes menores em um filme do qual não se sai de forma alguma indiferente.
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