“De onde veio essa história maluca? Como alguém conseguiu pensar nisso?”.
Esse é o tipo de pergunta que fazemos frequentemente diante de um filme, um livro ou outro tipo de arte que traga em si o inusitado que nos julgamos incapazes de criar.
As letras do grupo de rap curitibano 0800 Crew são um exemplo disso.
Extremamente criativos, Dé Saiyajin, Asiatiko e Chefe TF vêm construindo há um ano canções recheadas de referências e fazendo com que adivinhar a rima seguinte seja um enorme desafio para o ouvinte.
De onde surge tamanha inventividade?
Foi a partir desse questionamento que o pai da psicanálise proferiu em Viena a palestra “O escritor e a fantasia”.
Na fala ocorrida em 1907, a infância é apontada como o berço da engenhosidade, não só para escritores e artistas, mas para qualquer pessoa. Para ele, toda criança se comporta como um criador literário, construindo um universo da maneira como gostaria que fosse e o leva a sério. “O oposto da brincadeira não é a seriedade, mas sim a realidade”, diz.
Todavia, o passar dos anos faz com que deixemos cada vez mais a criança de castigo e leve para o mundo real o adulto e suas responsabilidades. Um dos contextos em que os dois se encontram seria o humor conforme apontado por Freud e seguido pela 0800 Crew.
Mas não é só nele que as pessoas maduras guardam as suas invenções. Elas estão presentes no imaginário de todos. Entretanto, se uma criança é vista por um adulto enquanto brinca, ela continua a sua atividade e, não raro, o convida para ingressar no devaneio. Já as pessoas maduras escondem ao máximo os frutos da imaginação.
Esse benefício da ilusão, porém, é visto pelo estudioso como um privilégio exclusivo dos descontentes: “Pode-se dizer que somente a pessoa insatisfeita fantasia, jamais aquela feliz. Desejos não satisfeitos são as forças motrizes das fantasias, e cada fantasia é uma realização de desejo, uma correção da realidade insatisfatória”.
‘Se a palavra é o que alimenta eu faço strogonoff em salmo /
Tá mais zika que aparenta pra escrever uma estrofe calmo /
Desce amargo tipo coffee… deixa em off, a sete palmo /
E se a justiça é cega, eu levo ela no oftalmo’
0800 Crew- Asa Delta
E é justamente essa realidade que torna a 0800 Crew um grupo necessário ao rap nacional, uma vez que o gênero ainda é conhecido pelos leigos somente como aquele que se dedica a relatar a dura vivência nas ruas, mas o grupo curitibano mostra que é possível ir além e versar sobre os sonhos que surgem do que é real.
No entanto, se por um lado esse rap mais humorístico tem a função de divertir o ouvinte, por outro se corre o risco de a rima se dar por si só e sobrepor-se à temática.
É o que pode ser visto em algumas músicas ou trechos. Na tentativa de se exaltar como sendo melhor do que os outros MCs, acaba-se por esquecer do público, que fica à deriva quando a criatividade nas letras é mais direcionada aos seus pares.
Esse aspecto é também tratado pelo austríaco ao abordar a figura do herói, personagem carregado de confiança para se expor aos mais diversos perigos e se manter vivo. “Mas acho que nessa reveladora característica da invulnerabilidade reconhecemos, sem maior esforço, Sua Majestade o Eu, o herói de todos os devaneios e de todos os romances”.
Contudo, se por vezes o Eu se torna o principal foco das canções do grupo, elas também podem ser explicadas por meio da maneira com que o neurologista equipara o sonhador diurno com o criador literário.
Para ele, a criação se dá quando duas vivências se chocam, a anterior, da infância, e a atual, da maturidade.
E talvez seja essa vivência que falte para os cantores quando tratam mais dos próprios desejos e menos de uma coletividade, o que para Freud seria o fator que nos traz a identificação quando nos enxergarmos e experimentarmos as nossas fantasias sem recriminação ou pudor.
Não obstante, isso é apenas uma questão de tempo, uma vez que o trabalho de estreia da cambada, o disco Liga Nóiz, fez com que já despontassem como um dos principais grupos de Curitiba e têm tudo para emergir a um cenário nacional se conseguir unir a criatividade com a maturidade, o que se nota em “Asa Delta”, música lançada para celebrar o aniversário do grupo e que trata justamente do sonho diurno abordado por Freud e vivido atualmente por eles.
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