“Caro leitor: tudo neste livro é invenção, mas quase tudo aconteceu.” É desta forma que Bernardo Kucinski inicia o dilacerante K.: Relato de Uma Busca, obra anteriormente lançada pela extinta Cosac Naify e que retorna em nova edição pela Companhia das Letras (2016, 169 págs.).
K.: Relato de Uma Busca parte da própria experiência familiar de Kucinski, cuja irmã, Ana Rosa Kucinski, desapareceu durante os anos de chumbo da ditadura militar brasileira. Nesta recriação ficcional repleta de memórias reais, Bernardo Kucinski revisita a tragédia, tanto da irmã quanto do país, sob a ótica de um pai em busca do paradeiro da filha, que sem muita explicação some sem deixar vestígios.
O pai, apresentado na trama apenas como K., era um polonês que imigrou para o Brasil para fugir da perseguição política que sofria, posto que em sua juventude havia sido preso por envolvimento com atividades políticas. Judeu, ele atua em São Paulo como dono de uma loja e escritor conceituado, um estudioso da literatura iídiche. Sua vida, totalmente levada em função de seus interesses, a literatura e a nova esposa fizeram com que houvesse um distanciamento entre ele e a filha, àquela altura professora de Química na USP.
Ao se dar conta que passaram mais de 10 dias sem nenhum contato, uma angústia se instala em K., que vai atrás da filha e descobre que há dias ela já não aparecia para trabalhar. O sumiço dela o deixa aflito e faz com que ele mergulhe em uma busca profunda (e às vezes arriscada) por notícias da filha. Quanto mais K. mexe, mais versões surgem, mais angústias ele acumula e mais cruel a narrativa de Bernardo Kucinski se torna.
De maneira magistral, Bernardo Kucinski reconstrói uma teia de relações entre pai e filha um tanto dolorosa.
De maneira magistral, Bernardo Kucinski reconstrói uma teia de relações entre pai e filha um tanto dolorosa. K. revive as razões que criaram e ampliaram esse abismo na relação com a filha, enquanto vai descobrindo uma mulher totalmente nova, diferente do que ele poderia imaginar. E novamente a obra apresenta uma dor latente e pungente a medida que o pai vai notando que, provavelmente, nunca terá a oportunidade de conhecê-la a fundo, nem de reencontrá-la para resgatar os laços perdidos.
Construído na forma de pequenos capítulos, cada um deles guarda uma peça desse quebra-cabeça que K. nunca conseguiu verdadeiramente terminar. Versões desencontradas, mentiras, cartas antigas, anotações, notas de jornais, rememórias. Há um pouco de tudo nesta obra que serve como uma provocação a tantos de nós que não tivemos contato direto com os horrores do período ditatorial, ou ainda os que viveram o período, mas insistem em querer procurar justificativas para as crueldades cometidas pelos militares.
Conhecer a história e os capítulos que devastam a alma é uma forma de manter viva na memória a certeza de que não podemos repetir os erros do passado. K.: Relato de Uma Busca entra na lista de leituras obrigatórias para entender os horrores de um passado tão recente. É uma travessia dolorosa, mas necessária.