A trama de Um copo de cólera é, à primeira vista, simples: são seis capítulos narrados pelo protagonista que recebe em sua chácara a amante, e o sétimo capítulo sendo narrado por ela. O elemento sexual se faz presente desde o início e não apenas no conteúdo. O ritmo dos acontecimentos igualmente emula o coito, na medida em que começa seduzindo lentamente o leitor enquanto os dois personagens também praticam o seu vagaroso jogo de sedução, até culminar no êxtase do esporro, no frenesi maior que tem lugar não no sexo, mas na discussão que ocorre entre os dois.
A relação sexual que se estabelece é, acima de tudo, uma relação de dominação por parte do homem. Ele vê no erotismo a possibilidade de assumir o papel de cultivador nutrindo a plantação que precisa dele para amadurecer, de mestre que instrui um discípulo. Mais do que isso, ele associa à luxúria e à obscenidade o imaculado, comungando sagrado e profano, atribuindo a si mesmo o ofício de divindade a doutrinar sua apóstola como quem lida com um ser inferior. O chacareiro vê sua parceira como alguém que só se realiza sob os estímulos masculinos. Tal superioridade aparece a princípio de modo um tanto quanto velado, retraído entre parêntesis, mas acompanhando a aceleração da obra vai aos poucos ganhando espaço até tornar-se opressiva.
A subversão do proprietário da chácara, no entanto, é válida apenas no terreno do sexual. Ele deposita mais entusiasmo na botânica do que no sexo, aplica mais esforço e obtém mais satisfação com as plantas. Assim, quando, ao notar sua cerca viva destruída por formigas, o protagonista é tomado pela cólera e trava uma altercação com a mulher, vem à tona um conservadorismo tirânico por parte dele. O homem, que na cama alicia perversamente o sórdido ao virtuoso, manifesta tresloucado em sua fala a repulsa pelo povo e o fascínio pela manutenção da ordem, esta como organização hierárquica e regra a ser cumprida, ao ponto de ser qualificado como fascista pela companheira.
“O povo nunca chegará ao poder! Não será pois com ele que teria um dia de me haver; ofendido e humilhado, povo é só, e será sempre, a massa dos governados; diz inclusive tolices, que você enaltece, sem se dar conta de que o povo fala e pensa, em geral, segundo a anuência de quem o domina”.
O embate político que permeava o país transporta-se, em Um copo de cólera, do meio coletivo ao privado e está representado pela peleja entre os dois personagens em discordância.
A denúncia do fascismo se faz especialmente relevante se levado em conta o ano de publicação da obra. Em 1978, o Brasil passava pelo conturbado período da ditadura militar. O embate político que permeava o país transporta-se, em Um copo de cólera, do meio coletivo ao privado e está representado pela peleja entre os dois personagens em discordância. Na obra de Raduan Nassar, o discurso atua como delator do caráter emancipador da mulher representante das massas e delator da índole repressiva do homem, espécie de ditador que recusa qualquer intromissão modificadora do arranjo considerado natural por ele.
A fala é também um sistema transmissor da fúria que impele os protagonistas. Pela linguagem se alcança o êxtase que simultaneamente os atrai e repele um ao outro, é por ela que se transmite a paixão atrelada à razão. Através das palavras – para ele “soluções imprestáveis” –, o homem expressa a cólera que o transforma em “eu cavalo”. Ao valer-se delas, o narrador sem nome caracteriza-se como “o quisto, a chaga, o cancro, a úlcera, o tumor, a ferida, o câncer do corpo”, tudo o que há de humanamente baixo, doentio e pútrido, enquanto, ao mesmo tempo, vangloria-se por sua sinceridade, por ser um déspota assumido e, portanto, licenciado.
O chacareiro reconhece e honra suas complexas contradições e tal consciência repercute na forma da novela. Em períodos longos de tirar o fôlego de quem lê, Um copo de cólera adentra o fluxo de consciência frenético daquele que não desconcilia o raciocínio da emoção e assim manifesta-se formalmente, mas com selvajaria. A ira reproduzida é como um reflexo natural e implacável do dilúvio interno ao narrador, inundado de deterioração, dores e presunção incontroláveis. Ele reconhece o mal dentro de si como qualquer coisa de divino, fundindo novamente o santo e o demoníaco em sua composição.
Racionalmente, o protagonista aproveita suas paixões para lidar com sua interlocutora de modo a ser alvo de algum sentimento autêntico, amor ou ódio, desde que provoque a cólera que o alimenta. O capítulo desse combate entre homem e mulher leva o nome de “O esporro” e tem representado em si todos os significados da palavra. Nele, há espaço para o coerente e violento bate-boca e para a explosão irracional do gozo induzido pela fúria que escapa, incontrolável, de ambos os personagens.
“‘Assumir’ o vilão tenebroso da história, alguém precisa assumi-lo pelo menos para manter a aura lúcida, levitada sobre tua nuca; assumo pois o mal inteiro, já que há tanto de divino na maldade, quanto de divino na santidade”.
Essa conjunção razão-paixão, tão necessária para a constituição do personagem masculino, é igualmente primordial para a estrutura da obra. O jogo entre dois elementos aparentemente tão distintos direciona o relacionamento dos protagonistas e também desenrola a trama do livro, que começa e termina com “A chegada”. O ciclo doentio é motivado pelo desejo que atrai o casal quase que maquinalmente, ainda que o desenlace de seus encontros seja sempre colérico. A simbiose amor-ódio e suas mais variadas ramificações são e estão nos próprios sujeitos que, polos opostos, aproximam-se magneticamente em prol da volúpia exasperada. Repleto de referências bíblicas e literárias (como Jorge de Lima, Faulkner, Fernando Pessoa e James Joyce), Um copo de cólera brinda à desarmoniosa congregação dos díspares que fundamentam as relações humanas.
UM COPO DE CÓLERA | Raduan Nassar
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 160 págs.;
Lançamento: 1978.