Pelas portas da sacada entreabertas, o início da tarde se anuncia por meio de um ar frio tão sutil quanto inconfundível. O outono, sempre temperamental em Curitiba, coalhou o céu de nuvens, algumas brancas e outras acinzentadas. O azul se esconde, tímido. Está ali, sob as cobertas, mas não é fácil enxergá-lo sem forçar os olhos.
Em dias assim, a introspecção sente-se mais à vontade e preguiçosa, como se estivesse em casa, de pés descalços, cabelos em desalinho, a deixar a vida acontecer. O mundo lá fora, de repente, parece mais distante. Dele, ouvem-se sons remotos. Alguém fala alto do outro lado da rua de paralelepípedos, mas não está claro o que diz. Parece contar uma história em tom animado, mas as palavras se embaralham e, quando chegam até aqui, entram na sala como uma onda sonora: música, olhar, beijo, surpresa.
Dar-lhes a forma de enredo fica por minha conta. A imaginação voa as costurando em tramas e imagens múltiplas, que se formam e se dissipam como a névoa espessa que cobre a cidade.
Dois olhares desconhecidos, em meio a tanto movimento, se cruzam por um instante, e o mundo para, silencia, como se todos os astros se alinhassem para aquele momento acontecer.
Vejo um lugar animado, cheio de gente, dançando, conversando. Dois olhares desconhecidos, em meio a tanto movimento, se cruzam por um instante, e o mundo para, silencia, como se todos os astros se alinhassem para aquele momento acontecer. O encontro se desenha na minha cabeça como uma cena de filme, com direito a câmera lenta, tudo para estender essa narrativa até o momento de um primeiro beijo que já não acontece mais ali, mas em meio a árvores, num bosque, onde os corpos se entrelaçam, embalados por uma certa surpresa: como foram parar ali?
A tarde avança lá fora, e o céu, aos poucos, vai ganhando outros tons, talvez um pouco alaranjados, em pinceladas tramadas pelo sol, também oculto, meio ensimesmado. No prédio, quase deserto a essas horas, um de meus vizinhos ouve música, um samba na voz de Cartola que desce as escadas e entra no apartamento por debaixo da porta, para me fazer companhia: “Alvorada lá no morro, que beleza / Ninguém chora, não há tristeza / Ninguém sente dissabor / O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo / E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo”.