Mais uma reflexão sobre o teatro contemporâneo! Não é novidade para ninguém que as diferentes formas de dramaturgia atuais não mais privilegiam personagens coesos, de uma psicologia invejável, com passado e até futuro (na forma de metas e objetivos). Não, eles estão no palco muitas vezes na forma de vozes – contraditórias, como na vida.
A crise do personagem realmente não é novidade. Por exemplo, para Robert Abirached, autor de La crise du personnage dans le théâtre moderne (publicado em 1994, ainda sem versão em português), essa crise seria quase permanente, como lembra Jean-Pierre Ryngaert (no verbete “Personagem” de Léxico do drama moderno e contemporâneo, organizado por Jean-Pierre Sarrazac).
Basta pensar que os “6 personagens em busca de um autor”, paradigma satírico da referida crise, é um texto de 1921, ou seja, pertence à vanguarda modernista histórica. Recorrer ao metateatro desde então foi uma grande sacada e tem nos divertido muito. Um recurso invocado na medida da crise, ele cria produtos tão bons que poderíamos ficar “confortavelmente” em crise para sempre.
Só para citar um exemplo do cinema: Mais estranho que a ficção (2006). O personagem de um romance inicialmente trágico percebe que a voz que ouve em sua cabeça é da narradora que o criou e que tem a firme intenção de matá-lo no final. Harold Crimp (Will Ferrell) passa então a lutar por sua existência, recorrendo, é claro, a um teórico de literatura (um ótimo Dustin Hoffman), que o convence a aceitar seu destino trágico em nome da obra-prima em que sua vida está inscrita, no que seria o melhor livro de sua Autora (Emma Thompson). A menos que ela, atormentada, lhe dê outra opção.
A crise envolve também o entorno do personagem de ficção, seja no cinema ou no teatro.
A crise envolve também o entorno do personagem de ficção, seja no cinema ou no teatro. Como escreve Ryngaert, ele não tem mais grandes desígnios nem está amarrado por preocupações narrativas importantes. Então, “exerce sua humanidade certificando-se de que ainda fala, dando nome a tarefas irrisórias ou fazendo listas para escapar ao naufrágio da memória”.
Por vezes, ele continua, esse personagem não passa de uma desculpa para um teatro da fala, podendo ocorrer até a completa eliminação da fonte emissora.
E quem fala? Nas dramaturgias a que temos assistido, com frequência a fonte retorna ao literário, num ato contrário. Como em Mesmas Coisas, espetáculo com Michelle Pucci a partir do livro inédito de Manoel Carlos Karam, de mesmo título. São as palavras dele, mas retrabalhadas por ela, com direção de Nadja Naira.
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Mas a fonte pode ser das mais variadas, como vimos recentemente nos Contos de Nanook, de Eduardo Ramos, peça que teve “disparador dramatúrgico” de Leo Moita e inspiração num documentário dos anos 30.
Já que é o receptor quem completa a leitura (seja de um livro, espetáculo ou filme), é ele quem dá a palavra final em sua digestão literária: o que irá selecionar recordar e até sonhar a respeito da obra. Alguns se incomodam particularmente com a confusão proposital entre personagem e ator, tão cara ao teatro atual.
“Eu quero saber por quem estou chorando”, incomoda-se um espectador anônimo. Um exemplo: Amadores, da Cia. Hiato, de São Paulo, que passou recentemente por Curitiba. “Eu nem sei bem o que estou fazendo aqui”, diz um dos não atores, já vestido do personagem que, originalmente, seria ele mesmo.
A questão é que a partir do momento que o condão da ficção está na jogada, nada é improviso nem realidade.
A forte necessidade por identidade nas artes que vemos hoje – de gênero, racial, partidária – pode ser uma resposta a tudo isso. Continuamos fragmentados, mas exigimos pertencimento.