Uma silhueta solitária caminha pela estrada, monocromática e silenciosa. Acompanhamos o ritmo de seus passos, apresentados em sucessão mecânica como as engrenagens de uma máquina. No meio do caminho, a carcaça de um gato morto. Uma mistura agonizante de horror e fascínio diante da presença física da Morte contorce o rosto do garoto, dotado de feições estranhamente adultas. Suando frio, o rapaz pega o corpo do gato do chão – e esse encontro é nosso primeiro contato com Jeffrey Dahmer, o insano serial killer americano cujas origens são exploradas na HQ Meu Amigo Dahmer (publicada pela DarkSide).
Brilhantemente escrita e ilustrada pelo cartunista Derf Backderf, Meu Amigo Dahmer é um estudo da gênese de um monstro, uma análise das circunstâncias trágicas que transformam um transtorno mental em verdadeira perversidade. A evolução de Dahmer de um estudante solitário a psicopata necrófilo e canibal é retratada por meio das experiências pessoais do próprio cartunista, que conviveu em proximidade com o serial killer em seus anos de escola.
Além de narrador, Backderf é também personagem central da história, e são suas percepções e observações – somadas aos relatos de seus colegas de sala – que formam o alicerce de sua reconstrução meticulosa da metamorfose de Dahmer em notório assassino.
Embora não exija do leitor conhecimento prévio do histórico de Dahmer, o impacto emocional dessa jornada –permeada de um magnetismo mórbido – é maximizado quando se mantém em mente o quão hediondos e monstruosos seriam seus crimes subsequentes. Pode-se observar, desta forma, a evolução dos desejos sombrios e maneirismos bastante peculiares que viriam a formar a base de seu cruel modus operandi.
Um dos triunfos de Backderf é justamente sua habilidade em retratar Dahmer como uma figura trágica cujo destino não poderia ter sido outro.
Um dos pontos fortes de Backderf é justamente sua habilidade em retratar Dahmer como uma figura trágica cujo destino não poderia ter sido outro (dadas as circunstâncias sociais, escolares e familiares que potencializaram seu desequilíbrio mental), ao mesmo tempo em que não faz apologia ao assassino, jamais justificando as inimagináveis atrocidades que o ex-colega viria a cometer.
Ainda, não se pode ignorar a importância da arte do cartunista, cujas ilustrações ressaltam as expressões faciais e contorções particulares da linguagem corporal do assassino. No mundo colegial criado por Backderf, adolescentes têm traços de adultos, e todos parecem esconder – detrás de rostos ora apáticos, ora exageradamente expressivos – loucuras e tormentos particulares, quase análogos aos demônios do próprio Jeffrey Dahmer.
É certo que, por se tratar de uma narrativa ao mesmo tempo biográfica e autobiográfica, o roteiro e o traço pouco importariam sem um robusto embasamento na realidade dos fatos ocorridos, e este é outro triunfo de Meu Amigo Dahmer. Para comprovar a veracidade de sua abordagem, Backderf realizou um trabalho exemplar de apuração jornalística, baseado em extensas entrevistas e pesquisas dos depoimentos de todos os envolvidos no caso, inclusive as confissões do próprio assassino. Todo este material suplementar está disponível para consulta no apêndice da obra – quase 100 páginas de ilustrações adicionais, detalhes biográficos e referências para praticamente cada uma das 190 páginas de narrativa.
Por si só, esse material já valeria a compra para qualquer leitor interessado em vislumbrar o funcionamento doentio de uma das mais perturbadas mentes assassinas da história. Somando embasamento histórico a tamanha riqueza de conteúdo e arte, Meu Amigo Dahmer é uma HQ de guardar na estante.
MEU AMIGO DAHMER | Derf Backderf
Editora: DarkSide;
Tradução: Érico Assis;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Junho, 2017.