Comemorando um ano de reuniões mensais no apartamento onde curitibanos falam com estranhos, vamos comentar algumas peças de teatro escritas pelos rapazes que comandam o lugar.
O Ap da 13 surgiu há dois anos como continuidade do Núcleo de Dramaturgia do Sesi-PR, uma proposta dos ex-integrantes daquele espaço de formação Eduardo Ramos (anfitrião), Marcelo Bouscheid e Don Corrêa.
Com encontros mensais às segundas-feiras para leituras de peças, parece incrível que tanto tenha sido feito em tão pouco tempo, incluindo uma mostra durante o Festival de Curitiba, com leituras, encenações, oficinas etc.
Minha ideia de homenagem é dedicar este espaço semanal para conhecer um pouco de dois textos de autoria dos “garotos”.
Com encontros mensais às segundas-feiras para leituras de peças, parece incrível que tanto tenha sido feito em tão pouco tempo.
Antes do fim (2010), de Bourscheid, parece-me uma poderosa pororoca, [highlight color=”yellow”]um encontro de águas entre a mitologia e o contemporâneo.[/highlight] Não por acaso o texto foi editado (Imprensa Oficial) e ganhou encenação-burburinho, com direção de Marcos Damaceno, naqueles idos do início da década. (Pessoalmente lembro de gente saindo no meio devido ao “incômodo”.)
Voltando ao texto, Ifigênia, a filha de Agamenon e Clitemnestra enviada ao sacrifício para que os ventos retornem e permitam aos gregos zarpar em direção à guerra, aqui é uma filha no exílio que retorna.
Nessa reescritura, surgem marcas do contemporâneo, como a mescla de diálogos que são longos trechos em monólogo e períodos líricos. A poesia usa, ainda, a repetição de trechos, por exemplo, entre o início e o fim, alternando apenas a ideia de voltar para casa e abandonar a casa:
“E chega um dia/ um dia comum / não há nada de diferente – de especial como se diz / neste dia / e precisamos abandonar a nossa casa / a casa da infância / o paraíso perdido”.
A citação ao mito vem também em alusões como à “frota de navios parada na praia por falta de vento naquela história antiga que você me contava”.
Além da intertextualidade óbvia com o mito de Ifigênia, cuja família mitológica tem seus nomes mantidos na peça (Orestes, Electra, Mãe e Pai), a relação com O Paraíso perdido, de Milton, e A senhora dos afogados, de Nelson Rodrigues, foi apontada em artigo de Eliane Benatti de Freitas (2013).
O uso de termos contemporâneos, mas que remetem ao passado, mantém o jogo com a antiguidade, a exemplo de “casa de seus crimes ancestrais” e “longa barba bíblica”. “Morrer de câncer” e “lágrimas de novela” são outras referências que causam um choque entre tempos no texto. Quanto ao espaço, é preciso destacar as sutis alusões a Curitiba – “país chuvoso”, “sem amigos”, “visitas sem aviso são uma ofensa no país onde eu moro” e até mesmo uma piada sobre o marido que não diz nada quando encontra um amante no armário. Por quê? Porque não fala com estranhos.
Outro encanto da escrita hodierna (não que seja um recurso recente) é a metatextualidade, trazida na peça em momentos como “seu mundo é ficção”, diz Electra a Orestes. Um trecho traz ainda a teatralidade explícita, com alusões a movimentos sobre o palco feitos por Electra:
“Fico uns minutos no fundo do palco/ o palco em silêncio / entro nas coxias / meu irmão fica só no palco/ o palco em silêncio/ e então / neste momento / se ouviria um grito / um grande grito.”
Nesse quesito, a peça Tutorial, de Don Correa, também nos brinda. [highlight color=”yellow”]Ambas falam de violência, entre outros temas de que a contemporaneidade tenta dar conta.[/highlight] Na obra, um ator e uma atriz contracenam com um não ator chamado a participar, mas sem acesso ao roteiro.
No final, após uma série de interações entre os três e a plateia, diz a atriz:
“Essa seria a hora de uma grande revelação. A hora que todos nós estamos esperando…para que possamos ir pras nossas casas e contar pros outros a historinha que acabamos de assistir. No lugar disso, o que vemos? (…) Foi pra isso que viemos aqui? Talvez o ator ou a atriz vai nos chamar pra ir até o palco. Eu não paguei ingresso pra isso! Eles não têm nada a dizer.”
Outra reflexão sobre o próprio fazer teatral surge no fim de Tutorial: “Uma coisa é fazer algo. Outra coisa é falar tão abertamente sobre isso.”
O questionamento sobre “o que acontece” no teatro contemporâneo tem sido recorrente, e parece muito saudável que tanto se cale ou tanto se diga, não importa, mas que isso se faça em diferentes linguagens.