Há muito que um conto – ou uma obra literária – não tomava de assalto e acalorava os debates sobre alguma dinâmica de algum elemento da contemporaneidade como fez “Cat person”, de Kristen Roupenian, que, no caso, escancarou a liquidez dos relacionamentos nos tempos de cólera e Tinder. Publicado dia 11 de dezembro na New Yorker, o texto narra a história de Margot, uma balconista de cinema, que se apaixona por Robert, um homem mais velho que vai à bombonière para comprar Red Vines e pipoca – uma escolha incomum, como pontua a moça.
As críticas, e também as defesas, se debruçam sobre a maneira como Roupenian construiu Margot: uma mulher capaz de rejeitar o cara de quem era a fim por não achar que ele pudesse atender às suas expectativas. E estava certa. Depois que é “rejeitado”, Robert mostra que não era assim tão legal e o breve relacionamento termina por mensagem de texto com Margot sendo chamada de puta.
‘A maneira como as mulheres respondem em situações sexuais desconfortáveis está pronta para escrutínio’.
A escritora, que teve os direitos do seu livro You know you want this adquiridos pela Companhia das Letras após batalha com a Intrínseca, foi acusada também de gordofobia devido aos comentários que Margot faz sobre o corpo de Robert. Segundo Rhiannon Lucy Cosslett, colunista do The Guardian, a maneira como “Cat person” se tornou viral demonstra como ainda é raro e chocante um texto literário explorar a vida sexual das mulheres. “A maneira como as mulheres respondem em situações sexuais desconfortáveis está pronta para escrutínio”, comentou Cosslett que, no mesmo texto, afirma: “o olhar feminino e sua avaliação sobre os corpos masculinos é um território estrangeiro em boa parte da ficção contemporânea”.
Margot é uma personagem ambígua como qualquer ser humano real ou ficcional. Não se discute, por exemplo, a afirmação pejorativa de Brás Cubas que disse que Eugênia era bonita mas coxa. Machado, um exímio narrador, fez de seu personagem um sujeito dúbio e cheio de falhas à guisa de gente de carne e osso. Elena Ferrante faz o mesmo em seus livros, elevando o olhar feminino ao patamar do status quo e reiterando o papel individual da mulher. É algo que vai muito além do “meu corpo, minhas regras”, abrangendo uma noção de autonomia que, infelizmente, nem todos os homens são capazes de compreender.
Realismo
O conto não é autobiográfico, porém, reflete experiências pessoais de Roupenian com um homem que conheceu on-line. Em entrevista à New Yorker, a autora revelou que ficou chocada com maneira como essa pessoa a tratava e, imediatamente, em choque com sua própria surpresa. “Como eu decidi que essa era uma pessoa na qual eu podia confiar? O incidente me levou a pensar sobre a estranha e frágil evidência que nos acostumamos a julgar as pessoas fora de contexto que encontramos além da nossa rede de contato, seja ela on-line ou off-line”, explicou.
Para a jornalista Juliana Domingos de Lima, do Nexo, a experiência verdadeira da escritora foi um fator fundamental por ajudar a dar um tom realista à narrativa. Ainda que não seja uma Emma Bovary do século XXI, Kristen apresenta ao leitor um olhar apurado e menos romântico dos relacionamentos contemporâneos. “O conto captura com maestria a experiência de sair com homens, da perspectiva de uma mulher de 20 anos. Tem, além disso, o mérito de retratar a subjetividade de uma mulher nessa circunstância, que tenta adivinhar os pensamentos do homem em questão e, acima de tudo, fazer de tudo para ser legal, agradável, ‘boazinha’”, afirma.
“Cat person” talvez não faça o mesmo sucesso quando for publicado em livro – que ainda não foi nem lançado oficialmente nos EUA –, mas foi fundamental por trazer à tona uma importante discussão que está escondida atrás do patriarcado que rege a sociedade há anos.