Um carro fecha o outro numa rua, um dos motoristas saca um revólver, sai do veículo e atira.
Jovens discutem na saída de uma balada, trocam socos, um deles cai, bate a cabeça numa quina e morre.
Um senhor reclama do jovem que ligou o som do carro muito alto, o jovem manda o senhor à merda, o senhor vai até a cozinha de casa, pega uma faca de cortar carne, volta até o carro e crava o metal no pescoço do jovem.
Notícias como essas pululam aos montes no noticiário policial. Tanto que não chegam a chocar mais, pois é algo que já se espera quando você acessa o site de algum jornal, liga a TV na hora do almoço ou simplesmente se atenta ao papo da vizinhança (um desses três exemplos aconteceu a alguns metros da minha casa). Enfim, são coisas que se ouve enquanto você mastiga e reclama do tempo abafado.
Gog Magog (editora Rocco), o novo livro de Patrícia Melo, tenta esmiuçar alguns desses aspectos da barbárie urbana, principalmente esse momento em que a pessoa deixa de ser um cidadão comum e acaba por se tornar um assassino.
Se por um lado o cidadão passou a questionar e tomar para si a defesa dos seus direitos, por outro lado, em algumas situações, desenvolveu-se uma espécie de obsessão que acaba por sobrepujar o bom senso e até mesmo a civilidade, por mais paradoxal que isso pareça.
O protagonista é um professor de escola pública que leciona biologia e se arrasta num casamento falido com uma enfermeira meio sinistra que curte manter no celular as fotos dos pacientes terminais de quem ela cuida. A vida já não ia muito bem e piora consideravelmente com a chegada de seu vizinho do andar de cima, o Sr. Ípsilon. Do teto começam a vir barulhos infernais do Sr. Ípsilon andando, batendo, correndo, pulando, arrastando móveis etc e isso irrita sobremaneira o professor, tanto que ele precisa tomar uma atitude para recuperar o seu tão adorado silêncio.
Além dessa questão da brutalidade oculta e do quanto a vida em comunidade pode ser barulhenta pra caralho, o livro discute essa nova tomada de consciência a respeito do direito individual. Se por um lado o cidadão passou a questionar e tomar para si a defesa dos seus direitos, por outro lado, em algumas situações, desenvolveu-se uma espécie de obsessão que acaba por sobrepujar o bom senso e até mesmo a civilidade, por mais paradoxal que isso pareça. Em outras palavras: o outro tem obrigação de respeitar os meus direitos, nem que para isso eu tenha que matá-lo.
Percebe-se uma fina camada de humor ao longo de toda a narrativa, uma vez que o ridículo do cotidiano (dois vizinhos brigando, cutucando o teto, etc) vai ganhando contornos absurdos e violentos (tipo filme dos irmãos Coen) e a lógica da coisa toda vai ficando cada vez mais estapafúrdia, pois há também o emprego de elementos científicos, forenses, penais e psicológicos (com direito a uma referência nominal a Pokémon), que demonstram de certa forma a sociedade, representada aqui pela irônica visão racional de um sujeito que cometeu um ato irracional, virando o microscópio para si mesma numa tentativa de compreender suas próprias doenças.
Ao nos apresentar criaturas tão miseráveis, Patrícia Melo nos coloca num universo ficcional em que a proximidade humana é possível não através das relações de afeto, mas sim da indiferença ou da violência. Trata-se do ser humano que só se reconhece na solidão ou com o sangue de outrem sob suas unhas. O resto é ruído.
GOG MAGOG | Patrícia Melo
Editora: Rocco;
Tamanho: 176 págs.;
Lançamento: Novembro, 2017.