Nos últimos dias, reportagens veiculadas em dois importantes telejornais do país tiveram como pauta uma pesquisa elaborada pela Federação do Comércio do Estado do Rio de Janeiro sobre “hábitos culturais do brasileiro”. No dia 31 de março, o Jornal da Globo exibiu “70% dos brasileiros não leram em 2014, diz pesquisa da Fecomércio-RJ”, assinada por Lilia Teles (assista aqui). Já “Brasileiros estão lendo menos, aponta pesquisa”, da repórter Cecília Flesch, foi assunto na edição de 20 de abril do Jornal GloboNews (assista aqui).
Chama a atenção o enfoque mercadológico, por assim dizer, com que ambas abordaram a temática. Nos dois casos, a discussão em torno do comportamento dos potenciais “consumidores de cultura” acabou por se ater aos dados econômicos apresentados pela Fecomércio. O trabalho das jornalistas privilegiou a condição financeira da população e apoiou-se na fala de pesquisadores para sustentar o discurso de que a economia interfere diretamente no interesse das pessoas por produtos e ambientes culturais. Cita-se, como ilustração, o fato de que em 2010 – ano impulsionado por um crescimento econômico acima da média -, foram registrados os melhores resultados em termos de adesão à cultura. Resta, porém, a seguinte indagação: a cultura é apenas um produto de mercado?
Não se pode ocultar, é claro, um cenário em que produções artísticas e culturais são distantes da maioria da população e muito por conta de sua situação socioeconômica. Em artigo bastante lúcido sobre desigualdade no acesso a esses bens (leia aqui), Francisco Mallmann, também membro da Escotilha, reflete sobre produção e abrangência de políticas públicas culturais. O texto cita levantamento do Ministério da Cultura que indica a relação entre a situação econômica, a geografia e o acesso à arte no país. Exemplo da interface “economia – geografia – acesso” é a situação de Curitiba, em que mais de 80% dos equipamentos da Fundação Cultural concentra-se na região central da cidade – o que faz com que as periferias tenham, por consequência, menos acesso a esse tipo de espaço do que bairros no entorno do Centro.
A questão é que, ao assistir a explicações atreladas exclusivamente a cenários econômicos, o telespectador não-especialista pode inferir que ler ou ir ao teatro é prática reservada à população com poder aquisitivo de compra maior.
Também não se deve desconsiderar que a pauta era a pesquisa realizada por uma entidade sindical empresarial como a Fecomércio/RJ, cuja proposta compreendia a análise do comportamento da população em relação ao consumo (ou aquisição) de bens artísticos.
A questão é que, ao assistir a explicações atreladas exclusivamente a cenários econômicos, o telespectador não-especialista pode inferir, de certa maneira, que ler ou ir ao teatro é prática reservada à população com poder aquisitivo de compra maior ou a extratos sociais mais elevados. Esse viés acaba por sustentar uma espécie de elitização velada da cultura no país.
E, certamente, se perpetua entre a população, endossando o senso comum de que para ter acesso à arte é preciso ter dinheiro. A fala dos próprios consumidores entrevistados faz coro a essa prerrogativa. “Mais do que poder, no entanto, é preciso querer ler“. Mais do que poder pagar, é preciso antes ter interesse por acessar a cultura. E, como bem pontua o colega Francisco, “é claro e comprovado que a elite econômica, definitivamente, não é a elite cultural”.
Ao encararem as práticas culturais – sejam elas em que linguagem – como meros produtos, as reportagens mostram-se superficiais. Isso porque o acesso a livros, a sessões de cinema, a shows musicais, a espetáculos teatrais, a exposições de arte e a apresentações de dança não se restringe a relações de compra e venda desses bens não-mensuráveis – ou “incompressíveis”, como afirma o sociólogo Antonio Cândido em O Direito à Literatura. Tanto a reportagem do Jornal da Globo quanto a do Jornal GloboNews não consideraram outras variáveis que compõem o processo, como a existência e o alcance de mecanismos voltados à formação de plateia e ao incentivo à fruição artística, dentre tantas outras. Fica evidente que não houve qualquer esforço de problematização do objeto em questão.
O debate sobre um tema tão amplo e, ao mesmo tempo, tão negligenciado pela grande mídia como a cultura poderia (e carecia de) ser mais abrangente. A maioria dos entrevistados afirmou que não lê ou não frequenta atividades culturais por falta de hábito ou de gosto por esse tipo de programa. Pegando esse gancho, caberia a discussão sobre políticas públicas voltadas à cultura ou sobre meios que possibilitem a democratização da arte e de suas produções – da promoção de iniciativas que atinjam a localidades com pouco ou nenhum contato com espetáculos artísticos à realização de eventos gratuitos nas grandes cidades, por exemplo.
Leitura
As reportagens de ambos telejornais tiveram como enfoque (ou ilustração da tese de que a economia influencia na adesão à cultura) um dado específico do levantamento da Fecomércio: a constatação de que 7 em cada 10 brasileiros não chegaram a ler um livro durante o ano de 2014.
Por outro lado, embora o preço do livro de literatura seja elevado quando comparado à renda média do brasileiro, a leitura tem se destacado como atividade cultural mais citada entre o público desde o início das pesquisas da Fecomércio. As duas informações despertam atenção, mas não conseguem ser explicadas pelos dados apresentados na reportagens. Mesmo em mais de 7 minutos – uma eternidade em televisão, diga-se -, a GloboNews não deu conta do assunto e, o que é pior, se valeu de vários clichês vazios (como o abominável “hábito da leitura”). Para buscar compreender a dicotomia, a fala de especialistas na área da leitura e de agentes de formação de leitores, além da citação de pesquisas específicas como Retratos da Leitura no Brasil (leia aqui), certamente enriqueceriam a abordagem. E mais: ajudariam a não reduzir a cultura a um mero produto de mercado.
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