Jean-Claude Bernardet, octogenário: crítico de cinema, teórico, roteirista e… ator. Artista que foi contemporâneo a movimentos considerados basais na historiografia do cinema brasileiro, notadamente no Cinema Novo. No campo da educação e do cinema, um dos protagonistas do movimento da formação de novos cineastas no nosso país, tendo enfrentado a ditadura militar na criação do curso da Universidade de Brasília e, mais tarde, na Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, nos anos 60. Mas esses não são seus maiores méritos, como o próprio chega a afirmar no documentário de Cláudia Priscilla e Pedro Marques, A destruição de Bernardet (2016).
Longe da sua biografia, encontra-se um senhor que conserva seu brilhantismo intelectual a par de uma extrema disposição criativa, ainda que isto seja motivo de crítica ou deboche de Bernardet a si mesmo. O documentário não busca respostas para quem é Jean-Claude, mas tece fios que representam o personagem principal que, desde a década de 1990, descobriu ser portador do vírus HIV. Em uma mesa de jantar com a sua cara amiga Heloísa Jahn, editora e tradutora, Bernardet questiona-se sobre a não-necessidade de narrativas no mundo contemporâneo. Isso diz muito sobre o intelectual que nunca quis ser atrelado a apenas uma carreira artística ou acadêmica, mas sempre percorreu os vários campos à própria revelia.
‘A destruição de Bernardet’ é uma rica homenagem ao envelhecer de um intelectual que continua tão irrequieto quanto sempre fora.
Em uma mesa de tarot, Jean-Claude tira cartas — uma delas, conforme lê o tarólogo que é consultado, fala sobre a finitude das coisas. Logo, Bernardet põe-se a dissertar sobre um longo relacionamento que acabara por motivos particulares. Em outro momento, numa conversa cheia de franqueza com o colega produtor Kiko Goifman, fala abertamente sobre opções de suicídio: a primeira delas, caindo de um prédio com uma altura de cerca de 8 andares, e a outra, um suicídio assistido pelos seus familiares e amigos mais próximos. Todas as opções são espécies de performances ao público, logo nota Goifman. Não é mentira: o crítico também é um performer de si mesmo e da própria linguagem que adere.
É muito particular como o fio condutor do média-metragem não tem necessariamente uma ordem cronológica: ora vê-se Bernardet ensaiando uma espécie de exercício vocal para atores, ora ele está ouvindo confissões de si mesmo e de seus entes mais próximos em tapes gravados. “Quando se decide não apertar o play as vozes ficam confinadas como em um caixão”, comenta a certa feita. Nós decidimos apertar o play da vida de Jean-Claude e as vozes que ecoam são muitas, embora certamente não sejam audíveis para todos. Em outro momento, ao caminhar por uma trilha numa floresta fechada, percebe-se comendo uma borboleta: antropófago de seu próprio tempo, que caminha até os dias de hoje na produção cinematográfica com uma nova geração que o contempla.
Bernardet é um filho pródigo não apenas de sua terra natal, a Bélgica, como afirma em certo momento — é também pródigo de seu próprio tempo. O longa-metragem de Priscilla e Marques, embora não tenha um tempo convencional, é uma rica homenagem do envelhecer de um intelectual que continua tão irrequieto quanto sempre fora. A própria senilidade exposta por Bernardet não é uma qualidade pejorativa, como a sociedade em geral pode presumir, mas é sim um amuleto que ele carrega: como as borboletas exibidas no filme. “Meu pai desde sempre me perturba”, comenta a filha em um dos tapes. A destruição de Bernardet mostra que Jean-Claude Bernardet está vivo e está aí para perturbar e vai continuar perturbando por muito e muito tempo.
ESCOTILHA PRECISA DE AJUDA
Que tal apoiar a Escotilha? Assine nosso financiamento coletivo. Você pode contribuir a partir de R$ 15,00 mensais. Se preferir, pode enviar uma contribuição avulsa por PIX. A chave é pix@escotilha.com.br. Toda contribuição, grande ou pequena, potencializa e ajuda a manter nosso jornalismo.