Não é de hoje que o jornalismo brasileiro vive uma onda de passaralhos. Em 2015, o jornalista Pedro Ivo Tomé transformou o obituário que escreveu sobre Therezinha Ferras Salles para a Folha de S. Paulo em um post viral nas redes sociais. Isso porque, após ser demitido, Tomé escreveu o necrológio da assistente social e, como forma de protesto, criou um acróstico no qual se lê “Chupa Folha”. O veículo processou o jornalista, mas acabou perdendo o processo dois anos atrás.
O episódio trouxe à tona, à época, um olhar do grande público para essa seção pouco reconhecida no noticiário diário e que já teve dentre seus colaboradores gente do calibre de Gay Talese e Robert McG. Thomas Jr., cujos textos se tornaram grife do obituário do New York Times, onde escreveu de 1995 a 2000. Quando faleceu, no último ano do século passado, Thomas também foi biografado na editoria que, perdoe o trocadilho, ajudou a ressuscitar. O livro das vidas, publicado pela Companhia das Letras com organização de Matinas Suzuki Jr., reúne o fino da prosa escrita para no NYT entre os anos 1980 e 2000.
“Para muita gente, é mais negócio ter um bom obituário no New York Times do que ir para o céu”, afirma Matinas no posfácio. Para quem acha que o obituário é uma espécie de fixação mórbida de jornalistas e leitores, basta uma leitura rápida para perceber que, em sua maioria, são textos sobre a vida de pessoas ilustres ou desconhecidas cujas vidas, por algum motivo, foram extraordinárias.
Russell Colley, necrológio escrito por Thomas e que abre O livro das vidas, homenageia – não há palavra melhor – o homem chamado de “Calvin Klein do espaço”, responsável por criar trajes espaciais pressurizados. “Ele não vendia plástico”, por exemplo, remonta os dias de Walter Hoving, executivo da Tiffany’s que rejeitou uma encomenda de John F. Kennedy pelo brinde ser feito de polipropileno. A exigência mínima era de que o mimo, que seria entregue a auxiliares que trabalharam na crise dos mísseis de Cuba em 1962, deveria ser feito de prata. A Casa Branca cedeu e os calendários foram confeccionados em prata.
Um dos casos mais impressionantes é o obituário escrito por Richard J. Meislin sobre seu colega de redação, Jeffrey Schmalz, que, depois de descobrir ser soropositivo em 1990, passou a escrever sobre a doença na tentativa de ajudar outros portadores do vírus HIV. O relato, marcado pela emoção e consternação, é comovente e encerra com um testemunho do próprio Schmalz sobre a luta contra a doença.
A morte de um sujeito comum, a única certeza de que realmente dispomos, pode ser um bom gancho para um dia morno nas redações.
Ode à vida
O documentário Obti. (2016), dirigido por Vanessa Gould, também se debruça sobre os profissionais do NYT encarregados da árdua tarefa de buscar informações sobre os falecidos. Ligações para parentes próximas, amigos, viúvos e viúvas fazem parte do cotidiano desse exército, que teve entre seus destaques Margalit Fox, jornalista que se aposentou neste ano e que estará no Brasil em dezembro para a quinta edição do Festiva Piauí GloboNews de jornalismo.
O livro das vidas deixa claro que o obituário não é a página policial dos jornais populares. Como em qualquer jornalismo minimamente sério, “um obituário é quase sempre uma ode à vida”, escreve Matinas. Não é o caso de santificar ou demonizar o personagem, mas de escrutinar a sua vida. Sem emitir uma única opinião, Robert McG. Thomas Jr. discorre sobre Nguyen Ngoc Loan, comandante da polícia do Vietnã do Sul, que ficou conhecido por executar um prisioneiro sob o olhar atento e aterrorizado da imprensa em 1968. Anton Rosenberg, tido pelo jornalista como “hipster exemplar” e seminal, é escrutinado como uma figura central para a geração beatnik.
Escritos como pequenas biografias, os textos são carregados de sensibilidade e, por que não, de literatura. Não é à toa que Talese sairia da editoria, na qual foi colocado como “castigo”, para se tornar um dos maiores escritores de não ficção. A morte de um sujeito comum, a única certeza de que realmente dispomos, pode ser um bom gancho para um dia morno nas redações.
O LIVRO DAS VIDAS | Matinas Suzuki Jr. (org.)
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Denise Bottmann;
Tamanho: 312 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2008.