A literatura contemporânea tem possibilitado que nós, leitores, tenhamos contato com vozes diversas que outrora não seriam ouvidas em outras plataformas midiáticas. É isso, no fim das contas, a que diz respeito a ideia de empoderamento: a de tomar as rédeas sob a própria narrativa, a recontextualizá-la, a contá-la não mais sob o viés cheio de poréns daqueles que olham para a vida dos outros pelo estranhamento, sempre escondendo no fundo da mente um “isso nunca aconteceria comigo”- o que é inevitavelmente uma ilusão. É nesse contexto que surge a escritora Amara Moira com seu livro E se eu fosse puta, uma obra que trata de um tema caro mesmo à literatura: a prostituição.
No entanto, para ler esse livro, é preciso despir-se de tudo aquilo que você, leitor, acredita saber sobre o tema. Doutora em Teoria Literária, Amara traz justamente um olhar desconstruído (na falta de uma palavra menos desgastada) e mesmo poético a algo que, para a maioria das pessoas, parece ser a última opção que resta à sobrevivência. E o título institui essa provocação que permeia toda a narrativa: e se eu fosse puta, prostituta, por livre opção, porque gosto, porque resolvi cobrar por algo que nós, mulheres, vendemos de outras formas que não o dinheiro?
É isto o que Amara Moira nos oferta: um relato confessional de suas experiências na prostituição, contadas a partir do momento em que ela resolve aventurar-se nas ruas. Uma obra deliciosa, ainda que impactante. E se eu fosse puta intercala uma espécie de anedotário dos programas feitos por Amara com reflexões muito pertinentes sobre sexo, gênero, masculinidades e a relação de tudo isso com a manutenção do capitalismo. Os “corpos dóceis”, como dizia Michel Foucault, que trabalham sem questionamentos para sustentar o mundo que vivemos, precisam extravasar em outras formas. E aí entra a que talvez seja uma das mensagens mais importantes dessa obra: se quisermos conhecer os homens que essa sociedade está formando, devemos perguntar primeiro às prostitutas, os únicos a vê-los desnudos, sem as máscaras viris que precisam carregar a todo instante – nem que seja por apenas um segundo.
O título institui essa provocação que permeia toda a narrativa: e se eu fosse puta, prostituta, por livre opção, porque gosto, porque resolvi cobrar por algo que nós, mulheres, vendemos de outras formas que não o dinheiro?
Travesti, Amara ainda agrega o livro a vivência nesses dois mundos: a diferença entre ser homem e ser mulher, em ser normativo e ser estigmatizado. Tal como Tirésias, na mitologia grega, a autora habitou nas duas peles e nos conta, com sabedoria, sobre as dores e as delícias das duas “condições” – a de ser homem, constantemente cobrado para que não fraqueje, não desista, não se exponha frágil, e a de ser mulher, constantemente importunada, olhada pelo desejo do outro e não pelo seu. E soma-se a isso, ainda, à condição de ser um “entre”, ser travesti, ser vista como alguém condenado à margem. É absolutamente tocante quando Amara relata, nos diferentes capítulos, as situações de humilhação (confundidas muitas vezes com afeto, com bondade, do tipo “eu namoraria com você”) que acometem as travestis cotidianamente.
Mas não se engane: esta é uma obra que, independente da temática, chega carregada de humor e que possibilita uma leitura fluida, envolvente. É bem provável que você não consiga largá-la. Um livro cheio de neologismos, a la James Joyce (em que Amara Moira é especialista) e marcado pela oralidade das ruas – em especial, pelo “dialeto” pajubá, a língua dividida na cultura LGBT, e propositalmente não “traduzido” ao longo das páginas. E se eu fosse puta é uma leitura imperdível.
E SE EU FOSSE PUTA | Amara Moira
Editora: Hoo;
Tamanho: 216 págs.;
Lançamento: Agosto, 2016.