Em 2006, Günter Grass, Nobel de Literatura em 1999, publicava seu livro de memórias, Descascando a cebola, no qual revelava ter feito parte da Waffen-SS, tropa de elite de Hitler e que chegou a ter mais de 52 mil membros em 1933. A notícia caiu como uma bomba, estraçalhando a reputação do autor d’O Tambor. Escritores, editores e intelectuais travaram batalhas nos jornais em defesa e contra Grass. O episódio reforçou como a relação entre literatura e política é delicada, e a linha que separa autor e obra é tênue.
Exatamente uma década antes de Grass chocar o mundo com o seu segredo, Roberto Bolaño tratava do tema com uma engenharia narrativa ímpar, publicando A literatura nazista na América, que acaba de ganhar edição brasileira – fechando o ciclo de obras canônicas do chileno ainda inéditas por aqui. Como uma estrutura enciclopédia, Bolaño traça inúmeros perfis fictícios de escritores que flertaram as ideias do Terceiro Reich e constrói, mesmo sem saber, um retrovisor para o futuro e aborda questões que permearão boa parte de sua produção literária.
Viajando pelas três Américas, o livro é uma colcha de retalhos de um fascismo imaginário e, ao mesmo tempo, latente, escondido sob as camadas de traumas e medo. Construído de maneira singular, A literatura nazista na América cruza parte dessas falsas biografias – que abraçam de 1930 a 2010 –, criando uma espécie de quebra-cabeças do terror e apresentado como o ideal nazista fluía, antes e depois da guerra. Nesse retrato impecável e grotesco, Bolaño inclui dois brasileiros: o carioca Luiz Fontaine de Souza e Amado Couto, ambos escritores e nazistas menores.
Inclassificável
A literatura nazista na América é daqueles livros difíceis de classificar. Talvez, cada biografia seja um conto. Talvez, não. Quem sabe tudo junto forme um romance. Pode ser que sim, mas a negativa também é verdadeira. Academicismos à parte, o que Bolaño faz é jogar na cara do leitor um sinal de alerta, um vislumbre sobre a banalidade do mal e sua inserção, quase invisível, no cotidiano. O primeiro relato, o de Edelmira Thompson de Mendiluce, não só é um dos mais genais da “antologia”, como é também o fio condutor de outras “personalidades”.
Não é exagero algum dizer que Bolaño está para a literatura latino-americana como Godard está para o cinema francês.
Mendiluce, esposa de um argentino milionário e pouco interessado em literatura, tenta ser como Silvana Ocampo, mas lhe falta talento e traquejo para tanto. Em um vaivém entre seu país e a Europa, Edelmira se afilia ao pensamento hitlerista cujo ápice é uma foto – guardada tal qual um tesouro – de sua filha, Luz – também biografada por Bolaño – no colo do führer. É como e o nó da hipocrisia fosse desatado, linha a linha, ao traçar as vidas e as jornadas marcadas pela simpatia pelo horror.
Por todo o livro existe um fluxo de ideias que, em um crescendo, dá corpo à proposta original do autor: expor a fragilidade do caráter humano e a fragmentação da sociedade. Por isso, e não há qualquer surpresa nisso, poucos meses depois, ainda em 1996, Bolaño publicaria Estrela distante, em que escrutinava a relação do Chile, por meio da ditadura de Pinochet, com a barbárie.
Desconstrução
Bolaño foi um homem de andanças. Perambulou pela Espanha, pelo México, voltou ao Chile pouco antes do golpe que destituiu Salvador Allende, deixou novamente seu país e morreu na em Barcelona, em 2003. Apesar de toda essa caminhada, se definia como latino-americano. “Minha única pátria são meus dois filhos, Lautaro e Alexandra. E talvez, mas em segundo plano, alguns instantes, algumas ruas, alguns rostos ou cenas ou livros que estão dentro de mim e que algum dia esquecerei, que é o melhor que alguém pode fazer pela pátria”, comentou em sua última entrevista.
Sob esse prisma – o prisma do não-lugar –, é fácil entender como Bolaño era capaz de compreender tão bem, e de maneira tão profunda, a delicada – e por que não dizer limitada? – democracia dos países latino-americanos. E ainda que o livro abrace também alguns poetas norte-americano, A literatura nazista na América é, antes de tudo, um tratado sobre a fragilidade dos países a partir do México. O verniz pacífico – e que Sérgio Buarque de Holanda chamou de cordialidade ao tratar do povo tupiniquim – cai ao primeiro chamado do totalitarismo e da intransigência.
Bolaño, que acreditava ser o escritor latino-americano que menos tinha futuro e mais possuía passado, dribla a afetação ao descontruir, com cuidado e detalhamento, o pensamento nazifascista, apresentando o perigo de ele estar escondido atrás de uma débil tolerância. “Todo romance, digamos, desde Stendhal, é ‘um espelho no qual se passeia ao longo de um caminho’ e todo caminho, evidentemente, oferece uma diversidade considerável de histórias”, disse o autor de Putas assassinas, um ano antes de sua morte. “Toda história, por sua vez, é sempre uma história no tempo, não fora do tempo, portanto suscetível de mudanças e metamorfoses. E suscetível, também, de várias leituras”.
Homem-manifesto
Até seus últimos dias – quando planejou um livro gigantesco que pudesse abastecer sua família com direitos autorais após a sua morte –, Roberto Bolaño foi um revolucionário, alguém à frente do seu tempo. Não é exagero algum dizer que ele está para a literatura latino-americana como Godard está para o cinema francês. Ambos são o arquétipo do radical, do homem-manifesto, que faz de sua obra a sua própria cartilha de guerrilha artística.
Seja com A literatura nazista na América, com 2666 – o tal romance que serviria de pedra fundamental do seu espólio e seria admirado por gente do calibre de Patti Smith – ou com qualquer um de seus livros, Bolaño burlou todas as regras, sem precisar roubar no jogo.
Como n’Os Detetives selvagens, a trama – se é que pode ser chamada assim – é encarada pelo olhar de diversos personagens, cada um deles elencado pelo organizado da antologia que descobrimos mais tarde ser o próprio Bolaño. Apesar de existir somente um narrador, os perfis carregam uma voz própria como se ecoassem os feitos e os fracassos daqueles que retratam. É uma estratégia ousada, criativa e perigosa, mas que é tratada com um talento quase inigualável.
Em tempos de sombrios, cujo passado é o molde, A literatura nazista na América é um livro obrigatório e indispensável. Bolaño transforma o terror em arte, sem apelar para o discurso fácil e raso, apostando em um leitor igualmente sábio, ressabiado e capaz de interpretar com clareza o recado.
A LITERATURA NAZISTA NA AMÉRICA | Roberto Bolaño
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Rosa Freire D’Aguiar;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Março, 2019.