Qualquer semelhança com o tempo que hoje vivemos não é mera coincidência no distópico Divino Amor, novo longa-metragem do cineasta pernambucano Gabriel Mascaro, em cartaz nos cinemas. Em um futuro não muito distante, no ano de 2027, o Brasil já não é mais o país do carnaval. A festa de momo e da carne foi substituída por uma grande celebração evangélica em forma de rave, na qual se festeja a espera pelo Messias, a possivel, ainda que não iminente volta de Jesus Cristo à Terra. Mulheres já não vestem biquinis e maiôs nas praias, apenas trajes de banho que as cobrem dos pés a cabeça, e a razão de existência de todos em idade fértil tornou-se procriar e constituir família – estamos aqui falando do modelo nuclear e heteronormativo, é evidente.
Norteada pelos valores das pessoas ditas de bem, tementes a um Deus rígido, talvez até rancoroso, a sociedade brasileira retratada no filme parece, em alguns momentos, espantosamente semelhante à que vemos se formar no Brasil de hoje, a oito anos do tempo em que a ação do filme se desenrola. Há, sim, alguns traços futuristas, como o uso da tecnologia nos procedimentos mais simples do cotidiano, com a identificação em lugares públicos de mulheres grávidas, e até uma igreja com serviço de drive thru, em que um pastor faz atendimento a jato, com direito hino de louvor. O futuro em Divino Amor, contudo, é assustadoramente parecido com o nosso presente.
A grande Dira Paes, um das melhores atrizes brasileiras da atualidade, vive a protagonista Joana, uma funcionária pública obcecada pela burocracia, que trabalha em uma espécie de vara da família, à qual casais em crise se dirigem para formalizar pedidos de divórcio. Evangélica convicta, ela tem como missão salvar essas almas desgarradas, tentando convencê-las a manter o casamento a qualquer custo e, se possível, procriar, se tiverem idade para isso.
Há mais luz de neon do que solar no belo, porém angustiante filme de Mascaro, expoente da nova geração do cinema brasileiro.
Joana e seu marido, Danilo (Julio Machado), um florista que trabalha na própria casa, pertencem a uma igreja, a do Divino Amor, que apenas aceita casais heterossexuais. Os dois desempenham um trabalho missionário: ajudam outros maridos e esposas que enfrentam dificuldades de relacionamento, sobretudo no plano sexual. A troca de casais, o compartilhamento de parceiros, é permitida, contanto que seja com a finalidade de reacender a chama do desejo (são muitas as cenas de sexo no filme) – e que a união gere frutos! O irônico é que Joana e Danilo há anos tentam, em vão, ter filhos.
Embora nunca seja identificada, a Recife que serve de cenário é uma cidade fria, asséptica, despida de sua tropicalidade. Há mais luz de neon do que solar no belo, porém angustiante filme de Mascaro, expoente da nova geração do cinema brasileiro, diretor dos premiados Ventos de Agosto (2014) e Boi Neon (2015). Cada plano parece cuidadosamente desenhado, propositalmente estetizado.
Por vezes engraçado, Divino Amor, narrado por uma criança, provoca um riso nervoso, porque o absurdo do futuro que se vê na tela parece familiar, possível demais em um país cujas liberdades individuais andam sob risco e no qual o extremismo religioso aos poucos toma conta dos discursos cotidianos, inclusive nos de poder. Por isso, é uma obra tão urgente e necessária, reafirmando a potência do cinema desconcertante de Mascaro.
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