O mundo das artes é repleto de histórias, causos, invenções e deformações a respeito dos criadores e suas obras. Algumas dessas histórias fazem barulho por um tempo, parecem fagulha pronta a virar incêndio, mas tão logo encontram o primeiro vento, ou a primeira dúvida, caem no esquecimento popular e se perdem pelo rabo dos dias. Talvez esse seja o destino da maioria delas, é verdade. No entanto, existem algumas poucas histórias que resistem, seja por conta de sua comprovação, seja por conta da força que carregam em seu ventre. É aquela coisa: mesmo que não seja fato a gente defende.
A verdade, na maioria das vezes, é admitida apenas quando e como convém a quem a aponta, sabemos bem disso, e o mistério não serve apenas aos livros de detetives, serve também, e muito, ao mercado que vive de mastigar ídolos no breu de sua caverna intransponível. Pois bem, as pinturas negras de Goya, pinceladas há mais de 200 anos nas paredes de sua casa, Quinta del Sordo, estão mergulhadas num caldo de histórias, dúvidas e, principalmente, de mistério. Diversos autores se dedicaram ao longo dos séculos em compreender as 14 pinturas que restaram das 15 originais das que Francisco de Goya deixou inéditas em vida, o que foi cumprido pelos familiares até décadas depois de sua morte, quando a existência da “série” veio à tona e trouxe em seu bucho toda a polêmica que resiste através dos anos em relação ao mestre espanhol e suas obras mais sombrias.
Não pretendo por aqui entrar em análises plásticas a respeito da obra do pintor, afinal o que sempre me encantou em relação às tais pinturas negras foram as histórias que habitam as incertezas da coisa, além, é claro, da beleza perturbadora das obras. Talvez seja esse o único motivo que me leve a escrever sobre um espetáculo que acontece a oceanos de distâncias dessas terras brasileiras, tão tristes e perturbadoras atualmente quanto as pinturas dessa fase do artista. Para compreender o mínimo ao qual nos apegaremos, basta dizer que falamos de um homem recluso, com a saúde física e mental deterioradas, exilado em sua própria pátria por um regime autocrático tirano e ainda por cima surdo.
O Goya da Quinta del Sordo em nada lembra o sorridente artista que perambulava pela corte e tinha amizade restrita com membros da família real. Muitos defendem que nessa fase, por conta do silêncio imposto pelo acaso, o pintor, afundado em melancolia, exteriorizava através de obras escuras e horripilantes, no melhor sentido da adjetivação, os demônios que trazia dentro de si. É justamente sobre essa melancolia que trata o espetáculo Monsieur Goya, una indagación, com dramaturgia de José Sanchis Sinisterra e direção de Laura Ortega, ao abordar as possíveis questões, e os sabidos fantasmas, que levaram o pintor a cravar na parede de sua casa essas obras tidas como assustadoras, pra dizer o mínimo.
O teatro é uma arte antropofágica por natureza, alimenta-se de tudo aquilo que serve de combustível à sua execução, não admite restrições ou imposições ao seu rito, por isso mesmo, e cada vez mais, alia-se a outras frentes artísticas e culturais em sua empreitada.
É inegável que vozes gritavam e ecoavam aos montes no espírito de Francisco de Goya, apesar do aparente silêncio que o mundo externo o dedicava. Goya tinha um gato preso dentro do peito e o bichano unhava, grunhia e rasgava a sua carne diariamente. Vasculhar essas cicatrizes é a proposta da montagem, tarefa inglória e quase impossível, diga-se. Além da encenação, há uma grande exposição com mais de 100 obras feitas por 58 artistas contemporâneos que se inspiram na “pegada” das pinturas negras para sua criação. A produção faz parte de um projeto do Centro Fernán Gómez, em Madrid, para comemorar a vida e a obra do pintor.
O teatro é uma arte antropofágica por natureza, alimenta-se de tudo aquilo que serve de combustível à sua execução, não admite restrições ou imposições ao seu rito, por isso mesmo, e cada vez mais, alia-se a outras frentes artísticas e culturais em sua empreitada. Teatro é tudo, portanto tudo passa a ser teatro, e isso pro bem ou pro mal dessa arte. A montagem de Madrid em relação ao pintor espanhol está longe de ser algo único, sobram exemplos de como o teatro aborda temas e biografias artísticas e como é importante utilizar esse meio, tão popular, para levar ao público o conhecimento e a aventura sensorial de desbravar vidas e obras desconhecidas.
Numa terra tão fecunda como a nossa, podemos e devemos levar ao palco milhares de artistas esquecidos, artistas imprescindíveis que, em épocas negras como a que vivemos, onde o culto à estupidez e ao pensamento raso tornou-se não só método como lei, tornam-se norte em monumentos cênicos sobre nossa brava gente, sejam eles grandes personas ou anônimos inspiradores. Isso, ao meu ver, é mais do que uma forma de render homenagens, mas uma maneira de manter viva a nossa potência enquanto povo brasileiro. Afinal, como Goya o fez em suas pinturas negras, é mais corajoso e digno enfrentar nossos demônios do que travesti-los de cotidiano ou patologias. Mergulhemos, pois, no abismo de nossa própria existência para que possamos ressurgir na história, mesmo que tardiamente, como sobreviventes do inferno ao qual estamos submetidos.
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