O ano de 2020 é indiscutivelmente um ano terrível. Rubem Fonseca, Moraes Moreira, Aldir Blanc e tantos outros grandes brasileiros e brasileiras, famosos e anônimos, nos deixaram aqui, nesse inferno chamado realidade, ao Deus dará, e, cada um com seu pedacinho de Brasil, fugiu daqui em direção à eternidade. A última a armar essa sacanagem com a gente foi a maravilhosa atriz e diretora Maria Alice Vergueiro, que nos deixou na última quarta-feira (03), aos 85 anos.
Maria Alice Monteiro de Campos Vergueiro nasceu, viveu e morreu na cidade de São Paulo. De família tradicional, quase que “quatrocentona”, como dizem, a musa underground do teatro brasileiro parecia ter correndo em suas veias, junto ao sangue, a fumaça e o cenário da cidade de São Paulo. Por mais que houvesse em sua história viscondes e barões, Maria Alice viveu mesmo foi com tipos bem mais populares e menos pomposos. A sua trajetória no palco se mistura às esquinas de uma São Paulo noturna, pulsante e, muitas vezes, marginal. Sua figura extrovertida será sempre sinônimo de teatro, teatro do bom, de combate, e de uma cidade que virava as suas madrugadas entre copos e poemas, tramando revoluções culturais e que, com a ajuda de gente como Maria Alice, fez do teatro o combustível para uma transformação da arte, do comportamento e da própria cidade que depois deles nunca foi a mesma.
Maria Alice Vergueiro estreou profissionalmente no teatro em 1962, no espetáculo A Mandrágora, com direção do gênio Augusto Boal. Pedagoga, conciliou os palcos com a sala de aula como professora de arte-educação até o ano de 1971, quando entra para o Teatro Oficina. Em 1972, participa da histórica montagem de Gracias, Señor e passa a ser engrenagem fundamental daquela máquina potente do teatro que foi o Oficina nesse período. Participa das filmagens de O Rei da Vela, O casamento do Pequeno Burguês e parte com o grupo para Portugal para participar da encenação de Galileu Galilei e ministrar aulas na Fundação Calouste Gulbenkian. Como todos que fizeram parte dessa vivência que foi o grupo do Oficina nessa época, Maria Alice vergueiro forjou ali uma força e uma crença no ofício do teatro que carregaria para toda a sua vida.
Em 1977, ao lado de dois ex-alunos, Cacá Rosset e Luiz Roberto Galízia, funda o Teatro do Ornitorrinco, um dos mais interessantes grupos que a capital já viu. Estreiam no mesmo ano a produção Os mais fortes, apresentado de maneira praticamente clandestina nos porões do Teatro Oficina. O espetáculo rende a Maria Alice seu primeiro prêmio Molière e consagra o Ornitorrinco como um grande grupo de teatro experimental. Com Cacá e Luiz a coisa engrena de vez. Foram inúmeros espetáculos, todos eles sucesso de crítica e público: Ornitorrinco canta Brecht e Weill, A ópera do Malandro, O Percevejo, O lírio do Inferno, esse último no famoso estilo cabaret que caracteriza o grupo.
O grande barato em relação a Maria Alice Vergueiro é sua própria vida, sua personalidade tão apaixonante quanto ameaçadora, e a importância de seu nome para o teatro brasileiro.
De espírito inquieto e natureza livre, Maria Alice Vergueiro arrumava tempo entre um espetáculo e outro do Ornitorrinco para se aventurar em outras parcerias, viver novos romances intelectuais e estéticos. Em um desses, dirigida por Gerald Thomas em Eletra Com Creta, recebeu prêmio da APCA. Com uma carreira contínua, Maria Alice fez do teatro mais do que um ofício, mas um estilo de vida, e foi através, e junto a ele, que a atriz enfrentou as impossibilidades que sempre nos surpreendem, sejam elas financeiras, físicas ou morais.
Quando os tais memes da internet ainda engatinhavam por aqui, a atriz viralizou com o famoso vídeo “Tapa na Pantera”. Se muitos jovens, até mesmo adultos, lembram-se de Maria Alice pelo sucesso repentino e enorme impulsionado pelo vídeo, é preciso dizer a esses que procurem conhecer a obra da atriz para se inspirarem e verem que ela foi muito mais que isso. Em 2015, convivendo com o Parkinson desde 2000, a atriz lança aquela que talvez seja sua peça mais emblemática: Why the horse?, uma espécie de espetáculo-rito que festejava sua carreira e sua biografia através do velório da própria atriz.
Foram muitos, muitos outros espetáculos. A tarefa de elencar os inúmeros projetos dos quais a atriz participou, seja atuando ou como diretora, seria enorme e desnecessário. Maior do que todos os sucessos dos quais participou, mais interessante do que qualquer história, real ou falsa, envolvendo seu nome, o grande barato em relação a Maria Alice Vergueiro é sua própria vida, sua personalidade tão apaixonante quanto ameaçadora, e a importância de seu nome para o teatro brasileiro.
Ao partir assim, Maria Alice deixou a todos nós não apenas mais tristes, mas também um pouco órfãos. Nesse país do avesso que nos assola, diante dessa gente tão estúpida, que faz da cultura inimigo e da razão crime, uma mulher como Maria Alice Vergueiro faz uma falta incalculável. Entre tantos caretas e moralistas, com a botina do fascismo na nuca, nos dói demais dizer adeus a gente como ela. Vai fazer falta a genial artista, muita falta, mas sua obra e a potência de sua vida vão nos servir de exemplo e de combustível pra aguentar o tranco hoje, amanhã e sempre, que certas pessoas nunca morrem se continuam vivendo dentro da gente.