Como se sabe, nada mais falso do que a entrevista verdadeira. O entrevistado só diz o que sente, o que pensa, o que sabe, nas entrevistas inventadas. Inventadas da primeira à última linha e, por isso mesmo, de uma imaculada veracidade. (N. R.)
Era meia-noite, hora convencional, mas altamente sugestiva. Boa hora para matar, para morrer, ou simplesmente para dizer as verdades atrozes. Estávamos em um terreno baldio. Eu, Nelson Rodrigues e uma cabra vadia. Há coisas que só se confessa em um terreno baldio, à luz de archotes e na presença de apenas uma cabra vadia. Nelson chegou exatamente quando o sino da matriz deu doze badaladas. Expliquei-lhe o motivo da entrevista: queria que, pela primeira vez, ele comentasse algo sobre a Internet e as redes sociais. “O brasileiro é um internauta nato”, replicou. “Mas vamos logo que às três da manhã começa a doer minha úlcera. Eu a adulo com pires de leite. Lambe como uma gata”. E disse o que se lerá a seguir.
Henrique Fendrich: De maneira geral, que tal lhe parece a Internet?
Nelson Rodrigues: Olha, a Internet tem todos os defeitos da vida real e mais um: é virtual. Após milênios de passividade abjeta, o idiota descobriu na Internet a própria superioridade numérica. O imbecil, que falava baixinho, ergueu a voz. Ele, que apenas fazia filhos, começou a pensar. Pela primeira vez, o idiota é artista plástico, é sociólogo, é cientista, é romancista, é prêmio Nobel, é dramaturgo, é professor, é sacerdote… Tudo isso sem sair da frente do computador. Os idiotas perderam a modéstia. São os que mais berram.
Henrique: Há certa imaturidade nos comentários na rede, não é?
Nelson: Exatamente. Há por aí nas redes sociais uma promoção da imaturidade como se fosse um sabonete ou um refrigerante. Mas nem se pense que essa idealização da imaturidade começa na Internet. Não. Começa em casa.
Henrique: Mas essas mesmas redes sociais podem ter papel importante na vida política do país…
Nelson: Mas há uma sábia distância entre os heróis da Internet e a política. Quando falam de política nas redes sociais, todos têm rompantes ferozes. Mas a política está fora da internet, e eles não. Os internautas não têm nenhuma vocação do risco. E possuem a vocação inversa, da segurança.
Henrique: E o Facebook? O que pensa especificamente sobre essa rede?
Nelson: No Facebook são publicadas coisas que não se contam nem ao médium depois de morto. Não há ser mais pungente do que aquele que recebe um “curtir”. Não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a auto-estima, e por isso um simples “curtir” já nos gratifica. Mal sabemos nós que um “curtir” compromete ao infinito.
“No Facebook são publicadas coisas que não se contam nem ao médium depois de morto.”
Henrique: A gente acaba pensando em agradar, só para ganhar um “curtir”.
Nelson: Cada um de nós é um ator sem plateia. Representamos, no máximo, para uma namorada, para meia dúzia de familiares, meia dúzia de vizinhos, meia dúzia de credores. E o sujeito que viraliza na Internet fica célebre. Aparece para milhões. E essa celebridade fulminante é a maior delícia terrena.
Henrique: No Instagram então, nem se fala.
Nelson: O que nos induz ao Instagram, o que nos faz tirar tantas selfies, é, digamos, uma vaidade de leitão assado. O sujeito parece desfilar triunfalmente, numa bandeja imaginária, e de maçã na boca, como o leitão assado.
Henrique: E quanto à pornografia? Boa parte do tráfego na Internet é gerada por conteúdo pornô.
Nelson: Sabe, ainda me impressionam os umbigos do biquíni. Não há lembrança de época tão pornográfica como essa. Mas o problema não começa na Internet, no YouTube, ou no RedTube. Não dá para chamar a Internet de obscena só porque pôs no vídeo a nudez coletiva, geral, ululante. Eis o que me pergunto: queriam o quê? Que as câmeras vestissem os nus, calafetassem os umbigos, enfiassem espartilhos nos quadris? Por que ter pudor na Internet se não tem fora dela?
Henrique: O que acha que vai acontecer com a Internet daqui para frente?
Nelson: Pouco a pouco, a Internet está nos transformando em idiotas da objetividade. Aí está o Twitter. O Twitter e o idiota da objetividade são gêmeos e um explica o outro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós sete bilhões de tuiteiros? Sete bilhões de impotentes sem sentimento.
Henrique: Mas os jornais impressos irão acabar?
Nelson: Ora, o jornal vive de mortes e ressurreições. Antes da Internet, era a televisão. Antes ainda, era o rádio. De vez em quando vem alguém passar o atestado de óbito do jornal. Mas ele continua. O jornal está vivo, o jornal é um cadáver salubérrimo.
E como, precisamente àquela hora, a úlcera de Nelson começou a ter contrações de víbora agonizante, tivemos que nos despedir. Fiquei a sós com a cabra vadia, que comia o capim – ou por outra, comia a paisagem. No alto, uma lua de sangue e, ao fundo, a gargalhada dos sátiros e duendes.