“Tudo é caso de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou envolvem um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência”.
Gilles Deleuze
Em primeiro lugar é preciso bater cabeça, prestar reverência, acender uma vela, destampar o vinho e gritar em alto e bom tom: o Oficina é mesmo tudo isso que dizem por aí, bicho, e é ainda muito mais. Mas muito mesmo.
Fundado em 1958 por José Celso Martinez Corrêa, Amir Haddad, Carlos Queiros Telles e outros tantos estudantes da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, na cidade de São Paulo, e profissionalizado em 1961, o Teatro Oficina se consolidou no cenário mundial como uma das mais combativas, inventivas e importantes companhias do teatro moderno, responsável não apenas por montagens históricas ao longo dos anos, como também pela transformação radical que chacoalhou o teatro nacional na década de 1970.
É fato: o Teatro Brasileiro deve tudo ao Oficina, inclusive seu folêgo recente que não o deixa sufocar diante do descaso e das ofensivas estúpidas e criminosas do atual governo. No último dia 16 de agosto, a lendária trupe, comandada com beleza e rigor pelo xamã Zé Celso, completou 60 anos de existência com sua produção a todo vapor.
Demonstrando potência e beleza, afirmando o teatro como possibilidade de resistência, e por que não de insistência, acreditando tanto na vida quanto no sonho, defendendo seu prédio, seu espaço de criação, e sua história da ameaça constante da especulação imobiliária e do horror que atormenta e maltrata tudo aquilo que não está à venda na prateleira da vida.
Correndo na contramão de um mundo careta, o Teatro Oficina é exemplo de delírio em épocas em que a maioria dos seres humanos escolheram a realidade, tão doída e miserável, em detrimento do acaso. Cravado no número 520 da icônica Rua Jaceguai, bairro do Bixiga, o espaço pensado pela genial Lina Bo Bardi, e sonhado por José Celso, é uma espécie de oásis no meio de uma metrópole como São Paulo.
Ouso dizer que não há pessoa no mundo que desceu a Brigadeiro Luiz Antônio em direção ao Bela Vista tendo como pouso final o teatro em frente ao elevado que não tenha se encantado com a beleza e a potência que fazem daquele espaço um dos lugares mais acolhedores e mágicos do mundo. Entrar no Teatro Oficina, descer a sua rampa como quem desbrava um novo mundo, rezar aos pés da sua cezalpina gigantesca que se abre em flor e força por entre um paredão de vidro que dá pra toda São Paulo, é uma experiência única que transforma e ecoa no fundo da alma.
Entrar no Teatro Oficina é uma experiência única que transforma e ecoa no fundo da alma.
Inquieto, o grupo fez de tudo e sempre muito bem. Revolucionou a linguagem teatral no Brasil, influenciou estéticas revolucionárias como o tropicalismo, renovou a linguagem audiovisual e demonstrou que artes cênicas, ecologia, arquitetura, sexualidade e a própria vida são o que fazemos dela e não aquilo que o mundo nos dá mastigado e insosso.
Se há no Braisl uma estética realmente brasileira, ela nasce e vive no oco daquele templo. Devorando de Shakespeare a Oswald de Andrade, de Artaud aos Sertões, épico fundacional brasileiro, o grupo bebeu tanto em Boal quanto em Tadeuz Kantor, foi de Gorki a Zé Vicente, e continua tocano sua locomotiva dionisíaca em direção ao infinito onde nossos olhos de pobres mortais não conseguem ver nada se não a fuligem do desconhecido.
Sempre impecável, com um tanto de santidade e outro tanto de satyro, a engrenagem do atual Uzyna Uzona é uma máquina azeitada de teatro e de imaginação. Curados e encantados na luta e pela luta, crentes na ação de resistir e submergir do caos, todos os artistas e trabalhadores que fazem do Oficina essa portentosa companhia são como sertanejos empunhando sonhos e esperança em nome da paixão e da teimosia que transformam diariamente em combustível para incendiar e explodir os alicerces dessa vidinha mal passada que nos é imposta.
O sexagénario sonho de Zé Celso e sua trupe de anjos barrocos assopra velas e, com o perdão do clichê, quem ganha o presente é o povo brasileiro, afinal, no meio de tanta ignorância, afundados na lama da intolerância e da maldade humana como estamos, a longevidade do Oficina é prova viva e fecunda de que é possível brotar em trepadeiras, crescendo pelas fendas, para reinventar um país e através dessa invenção criar um novo mundo.
Oscar Wilde escreveu certa vez que só existem duas tragédias na vida. A primeira delas é não conseguir o que se quer, a segunda… a segunda é conseguir. Mesmo com o nada feito, com a sala escura, com o nó no peito e a cara dura, o Teatro Oficina vai levando a dor e a delícia de ser, elegantemente, a experiência cênica mais duradoura e importante de que se tem notícia.
A nós, pobres mortais, cabe o espanto e o agradecimento por eles serem tanto e tão guerreiros. Daqui, de olhos marejados e peito aberto, só é possível sorrir e festejar, desejando a toda a rapaziada do Oficina, e ao inigualável Zé Celso, todo amor e toda força que o mundo pode suportar.
Viva o Teatro Oficina!