A literatura de Fabiano Vianna é um passeio pela memória da realidade e da ficção. O artista visual que publicou há pouco sua estreia literária, Quem costura quando Mirna costura, faz dos seus contos um mergulho em um mundo fantástico e idílico, em que é possível traçar um limite entre a inocência e o amadurecimento. Como na obra plástica, Vianna usa a literatura para exercitar as relações que dão corpo ao nosso mundo disforme, se apropriando da cultura popular e do imaginário como forças-motrizes da sua criação.
Seguindo a tradição dos grandes inventores da memória – Sebald, Bolaño ou mesmo Valêncio Xavier –, Fabiano dispensa os gêneros para se debruçar somente sobre as histórias, que flutuam na oralidade. É até difícil enquadrar os textos de Quem costura quando Mirna costura como contos. São, na sua maioria, relatos. Nesse caleidoscópio pulp e folclórico, que extravasa a ideia da literatura pós-moderna, o artista – chamar Fabiano de escritor é também uma redução – encontra um universo próprio, um habitat tão particular que é impossível de ser habitado por outro.
Parte dessa originalidade vem da prosódia, bastante assentada na tradição popular, mas também das influências mais imediatas.
A partir de cenas cotidianas, mas carregadas de uma experiência surrealista, as histórias se cruzam para compor, como na série O Bairro, de Gonçalo M. Tavares, algo impossível de se dissociar. Entre agulhas e carreteis, enterros e tortas, bondinhos que voam e figuras míticas de Curitiba, Vianna foge da narrativa urgente e, deliberadamente, política. Ao mesmo tempo, existe um quê de experimentalismo como “Ping-pong”, o desbravamento da selva de pedra em “Ana e o espelho”, o maior de todos os relatos, ou ainda o enlace familiar em “Cortes e costuras”, “O Morto mais bonito da cidade” e “Olhos de botão”.
Os textos-enigma de Quem costura quando Mirna costura são como a vida escarrada: um mistério impossível de ser desvendado. Isso, obviamente, não significa que a obra é intransponível, ao contrário. Nos passos do Vampiro, Vianna usa da banalidade para falar do espírito e de outras grandezas. É na perseguição do lugar-comum que está o inesperado. “Lineu” e “O Cheiro de mofo” são narrativas-síntese dessa construção tão singular.
Parte dessa originalidade vem da prosódia, bastante assentada na tradição popular, mas também das influências mais imediatas. Há uma combinação de Borges e Calvino, das lendas indígenas com Manoel Carlos Karam, de Milton Hatoum e João do Rio. Quando algo não se encaixa, na verdade, é que o retrato da realidade se dá em sua forma mais ampla e sui generis. Quem costura quando Mirna costura é um livro delicado sem ser piegas, é inteligente e carismático, um sopro de vida em um tempo sem esperança alguma.
QUEM COSTURA QUANDO MIRNA COSTURA | Fabiano Vianna
Editora: Arte & Letra;
Tamanho: 100 págs.;
Lançamento: Julho, 2021.