É praticamente consenso que hoje vivemos tempos confusos, nos quais muitas das certezas que alguma vez tivemos estão sob questionamento. As dúvidas se estendem por todas as esferas da vida: a política e a privada; os ideais da vida profissional e as formas de como criar os filhos; as tentações de uma vida regida pelo mundano e os conflitos das gerações que se afastaram da religiosidade. A instabilidade de nossas crenças, típicas de um mundo pós-moderno, como diriam alguns, também se evidencia na televisão e no jornalismo. Afinal, o que informa e o que desinforma? Qual é o jornalismo que humaniza e qual ajuda a perpetuar as ideias pré-concebidas? É possível que, nas boas intenções do jornalismo de “gente do bem”, os estigmas acerca de certos grupos se proliferem?
Tivemos recentemente dois episódios interessantes na televisão brasileira que inspiram esta reflexão: no primeiro, a polêmica levantada por um personagem do programa Pânico na Band, veiculado na Band. O personagem Africano, interpretado pelo humorista Eduardo Sterblitch, foi severamente criticado nas redes sociais, levando o Pânico na Band a tirá-lo do ar. Baseado na performance do black face, uma técnica do teatro em que um ator branco utiliza tinta escura para personificar um negro (leia mais aqui), foi acusado de ridicularizar e homogeneizar não apenas a população africana, mas todos os descendentes destas pessoas (saiba mais sobre o episódio). No conceito proposto pelo sociólogo Erving Goffman, o estigma se refere às marcas (a princípio apenas físicas, mas com o tempo também simbólicas) que diferenciam os seres “marcados” dos considerados normais. O Africano, portanto, foi acusado de reiterar as marcas daqueles que, historicamente, foram estigmatizados.
Em um mundo em que tudo é capturado imediatamente pelas redes sociais, e no qual as patrulhas a favor e contra tudo que existe estão sempre a postos, é difícil imaginar que um programa televisivo, mesmo sendo o Pânico na Band – marcado pela característica do caótico, do nonsense, da desconstrução de todo o tipo de lógica racional – assumiria abertamente uma posição racista, mesmo que fosse para simplesmente fortalecer uma marca de politicamente incorreto. Afinal, mesmo os racistas, sem dúvida, não se visualizam racistas.
A TV que segmenta e destaca os que se superam talvez não esteja assim tão distante da que perpetua os preconceitos.
Imagino então que o que talvez inspire personagens como o Africano de Sterblitch seja, justamente, o argumento de uma espécie de “valor pedagógico” ao se explicitar o racismo por meio de uma evidente caricatura, o estereótipo de um africano. A rudeza do personagem, em um desejado sentido de ironia, jogaria na cara do espectador o próprio preconceito. Só isto justificaria, creio eu – talvez por pura ingenuidade – que um artista se propusesse a incorporar alguém que, em alguma medida, ajuda a perdurar o que causa sofrimento a outrem. Vale lembrar que Eduardo Sterblitch foi muitas vezes louvado pela crítica pelo seu estilo de comédia, que remete ao humor soturno de Buster Keaton (leia aqui). Mas a grande questão que aqui se insinua, afinal, seria: o que é mais efetivo no intuito de problematizar o outro? Como trazê-lo à televisão de uma forma que não o simplifique a um papel, seja ele negativo ou não?
Isto me leva ao segundo episódio, que é o retorno sempre bem-vindo do médico Dráuzio Varella à TV, em quadro veiculado no Fantástico. A série Qual é a diferença? promete trazer um “novo olhar”, conforme se anuncia, à Síndrome de Down, modificação genética que acomete pelo menos 300 mil pessoas no Brasil. Em razão da representação feita pela mídia ao longo das últimas décadas, é uma das deficiências intelectuais mais conhecidas e que, portanto, exigiu que o jornalismo se adaptasse durante este tempo para abordá-la.
A primeira reportagem veiculada por Dráuzio Varella sobre tema conta com a sensibilidade e didatismo que lhes são peculiares. Traz como trunfos a perspectiva de uma abordagem pouco óbvia – como as entrevistas com as mães grávidas que revelam seus conflitos e aceitação ao saber que terão filhos com Síndrome de Down, e a abertura que coloca o protagonista da reportagem (Breno Viola, 34 anos, tricampeão de judô) em pé de igualdade com a “estrela”, o doutor Dráuzio (veja aqui a reportagem). Mais do que isso, o primeiro episódio do quadro faz algo que merece destaque: dá voz a quem dificilmente é ouvido e tenta, ainda que de forma tímida, apresentar o mundo sob a sua perspectiva. O momento em que vários portadores de Síndrome de Down falam diretamente com estas grávidas é absolutamente comovente.
Entretanto, a matéria peca por alguns vícios recorrentes de um jornalismo que, carregado de boas intenções, acaba por fortalecer as marcas do diferente. Ao apresentar a matéria em estúdio, por exemplo, os apresentadores destacam a presença de Breno, que não é apenas alguém a quem acomete uma condição genética (inevitável, como explica o doutor Dráuzio), que é tricampeão em um esporte, “mas que é muito mais que isso”. De alguma forma, colocar sob destaque apenas as dificuldades, as conquistas e a superação de Breno (que é inesperada, como a matéria sugere, ou diz sem dizer), acaba de alguma forma por fortalecer o estigma e a distância daqueles que apenas adentram as agendas jornalísticas por meio da grande história do “guerreiro”, do “herói”, daquilo que não se esperava dele. E não apenas por ser quem se é.
Que se esclareça: a perspectiva de superação de si mesmo é – e deve ser – inata a todo ser humano, e são absolutamente louváveis aqueles que, enfrentando inúmeros percalços a mais do que enfrenta a maioria das pessoas, conseguem atingir aquilo que buscam. Por outro lado, é preciso questionar o enquadramento dado pela televisão (e pelo jornalismo como um todo) que só traz visibilidade ao deficiente que heroicamente se supera. Como se viver, ser a si mesmo, não fosse superação suficiente.
No fundo, a TV que segmenta e destaca os que se “superam” talvez não esteja assim tão distante da que, explicitamente, perpetua os preconceitos.
Por fim, uma dica: o livro reportagem Os Medalhistas, do jornalista Paulo de Siqueira, faz um retrato sobre atletas paralímpicos paranaenses e é um ótimo exemplo de como é possível pensar em um jornalismo que humaniza sem idealizar. Está disponível na Amazon (clique aqui).
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