Trocando em Miúdos: Racismo ou censura? A conturbada discussão envolvendo o uso da blackface em espetáculos teatrais e o recente cancelamento da peça A Mulher do Trem, da companhia de teatro Os Fofos Encenam, nos levam a discutir e refletir sobre os limites da arte e suas consequências.
Nas últimas semanas, a companhia de teatro Os Fofos Encenam foi protagonista de um ruidoso e complicado imbróglio envolvendo o uso da blackface no espetáculo A Mulher do Trem. A montagem, cuja estreia ocorreu em 2003, fazia parte da programação do Itaú Cultural e foi cancelada após uma série de protestos nas redes sociais por parte do Movimento Negro e seus simpatizantes.
A Mulher do Trem, espetáculo mais premiado da companhia, é uma comédia que se passa no Rio de Janeiro na década de 1940. A peça é, segundo o site do próprio grupo, inspirada nos velhos tempos do Brasil “bonachão pequeno-burguês”. O espetáculo tem como cenário a sala de visitas de uma casa da classe média, na qual desfilam os tipos costumeiros: a sogra ditadora, o pai acuado e libertino, o galã, a ingênua, o amigo bêbado e sua esposa que trai e é traída, a prostituta de luxo, o impertinente, os empregados intrometidos; ou seja, desfilam pelo texto todos os personagens típicos da dramaturgia da época.
Dentre os inúmeros tipos costumeiros que desfilam nessa comédia francesa do século XIX, existem dois que chamam a atenção pelo uso da chamada blackface, técnica de pintura do rosto de um ator branco com tinta preta para chegar a uma “representação” desejada de ser humano negro.
Para se entender a questão, é preciso voltar no tempo e verificar a origem do uso da blackface. Historicamente ela faz parte de um conjunto de mecanismos que tinham por intuito esteriotipar e ridicularizar a figura do negro. Comediantes, por exemplo, levavam plateias brancas e aristocráticas ao delírio representando escravos com trejeitos completamente impensáveis nos dias atuais. Em muitos casos, além da pintura na face, acentuavam-se os lábios do ator.
No caso da peça encenada pelo Fofos, tudo indica que o tal recurso é utilizado para fins humorísticos. O grupo justifica o uso da blackface invocando o respeito às tradições circenses, onde a “máscara” já foi muito utilizada. Entre os violentos gritos que acusam atores e grupo de fascismo, e a histeria coletiva de artistas que enxergam no cancelamento da peça uma espécie de brecha para a censura, há quem acredite que o episódio representa uma oportunidade para se discutir publicamente um tema tão doído para a humanidade: o racismo.
O debate que envolve o contexto do cancelamento do espetáculo não é nenhuma novidade em nosso tempo. São inúmeros os casos de artistas – e de obras por consequência – interrogados por conta disso ou daquilo. Danilo Gentilli, por exemplo, foi acusado de racismo por conta de uma piada de extremo mau gosto, para dizer o mínimo, em um de seus shows. Diferente do ignóbil humorista, Os Fofos Encenam não possuem um histórico que revele qualquer traço de preconceito em sua trajetória, pelo contrário, figuram entre os mais aclamados e reconhecidos grupos de teatro da capital e têm no currículo peças que lutam por causas compreensíveis; por isso é preciso ter muita calma antes de direcionar acusações tão graves aos integrantes da trupe.
Todo ser humano carrega nas costas a marca do racismo. Não quero dizer com isso que todos sofrem e sentem na pele a crueldade do ato racista. Evidente que não. No entanto, defender a liberdade e a igualdade entre os homens é uma questão de humanidade, e há algo errado com aquele que não sente bater no próprio corpo a violência contra o seu semelhante.
É claro que o racismo é intolerável, assim como é inegável que a blackface foi usada, historicamente, enquanto instrumento para oprimir e ridicularizar os negros. Reforçar um estereótipo é violentar, é agredir a história e a glória da beleza humana, ou seja, é inaceitável.
“É claro que o racismo é intolerável, assim como é inegável que a blackface foi usada, historicamente, enquanto instrumento para oprimir e ridicularizar os negros. Reforçar um esteriótipo é violentar, é agredir a história e a glória da beleza humana, ou seja, é inaceitável.”
No caso da peça A Mulher do Trem, fica a impressão de que o uso da blackface não tem a intenção de rebaixar ou ofender ninguém, o que não quer dizer que não o faça. O preconceito reside no ódio, na miséria humana, mas aqueles que sofrem diariamente com esse mal podem identificá-lo em situações que passam desapercebidas aos olhos de quem não sente na pele os horrores causados pelo ódio injustificável. No mesmo sentido, a onda de ofensas (algumas com uma violência digna de grupos fascistas uniformizados) contra uma companhia que tem um histórico de peças que caminham no sentido oposto do racismo é algo também intolerável.
Do cibernético ódio escorrendo pelos cabos de fibra óptica tupiniquim, a coisa descambou para a violência, em todos os sentidos. Sensato, o grupo optou pelo diálogo com os integrantes do Movimento Negro para comprender melhor como a tradição de uns pode representar uma ofensa a outros. Evidente que a partir desse episódio é possível analisar o racismo e suas causas e consequências na sociedade, ampliando o debate para outros campos das artes, por exemplo. É imprescindível que as ideias sejam sempre superiores à estupidez, por isso, é louvável a opção pelo diálogo de ambos os lados, e a coragem em tornar público um debate desse porte.
Eu, que tenho minha crença fundada no afeto e busco me perder por todos, sempre torço para que o episódio impulsione discussões sobre o tema. Neste tempos sombrios em que vivemos, onde o ódio e a intolerância andam de mãos dadas, tanto o teatro quanto o jornalismo precisam se posicionar a favor do humano. A informação e o entretenimento podem libertar o homem de suas impossibilidades, ou acorrentá-lo pra sempre em sua própria pequenez. Qual caminho seguiremos daqui pra frente?