Em Não fossem as sílabas do sábado, a escritora Mariana Salomão Carrara fala sobre luto. Mas talvez não seja só isso: ela fala, na verdade, da relação da morte com o acaso. Para morrer basta estar vivo, diz a frase do senso comum. E no caso de André, o marido da arquiteta Mariana, foi isso mesmo: bastou ele sair de casa no exato momento em que um homem caía da janela para que o fim chegasse.
Mas provavelmente Não fossem as sílabas do sábado encontre seu sentido nas outras camadas que vai tecendo. Aqui temos a história de duas mulheres, Ana e Madalena, que estão unidas para sempre por conta de suas perdas. Ana perdeu André, e Madalena perdeu Miguel, um homem que permanece como uma incógnita. A partir daí, os destinos das duas (e da pequena Catarina, filha que André nunca chegou a conhecer) irão se cruzar.
Nesta obra, que é delicada e dura, Mariana Salomão Carrara retorna com um tema mais pesado em relação a Se Deus me chamar não vou (obra que lançou em 2019), que guarda um tanto de humor ao tratar da solidão de uma adolescente. Sua narrativa entrecortada entre passado e presente nos levará à ótica de Ana, uma mulher enlutada, que se vê à frente dessa perda imprevista e não tem outra opção que não seja seguir em frente.
Ela vai nos contando, de maneira muito honesta, o quanto a morte de um ente querido se torna uma espécie de divisor de águas entre os enlutados e os ainda intocados pela morte. A chegada da filha também se revela um fator a mais: o melhor amigo, que não tem intimidade com crianças (e nem com mortes), acaba se afastando.
O luto, portanto, é como uma parede que separa os privilegiados dos malditos. Em certo momento, Ana fala sobre seu melhor amigo: “se ele pudesse faria como os meus amigos que não suportavam mais de trinta minutos ao lado do meu silêncio, mas compreendo, eu teria feito o mesmo, teria oferecido um abraço à amiga viúva e então corrido para casa para certificar que todos que continuavam vivos e não morreriam nunca”.
Promovida a mãe solo sem que tenha escolhido por isso, resta a Ana poucas companhias. Uma delas é a de Madalena.
‘Não fossem as sílabas do sábado’: a descoberta da mãe e a questão do cuidado
Não fossem as sílabas do sábado constrói uma narrativa densa e que gera fácil identificação com quem o lê – especialmente as mulheres. O universo abordado aqui é, sem dúvida, feminino. Os temas centrais do romance tangem algumas experiências só possíveis às mulheres.
Ana vai nos contando, de maneira muito honesta, o quanto a morte de um ente querido se torna uma espécie de divisor de águas entre os enlutados e os ainda intocados pela morte.
Uma delas é a transformação da mulher em mãe. Como mãe de Catarina, Ana se vê se revisitando seu passado de filha, em especial, nas suas memórias sobre o divórcio dos pais, e sobre o papel inadequado em que foi colocada nessa situação.
Aparentemente, temos então uma menina sem pai e sem mãe – ao menos no plano da metáfora. Não por acaso, Ana procura em Francisca (a babá que Madalena contrata, já que é impossível dar conta de um bebê sozinha) uma espécie de mãe sábia que irá proteger as duas.
No entanto, por mais que a obra foque em Ana (que conta a história em primeira pessoa), há outra mulher enlutada. Madalena, no entanto, não tem o mesmo direito ao luto. Não sabemos muito sobre ela (o que vai criando uma expectativa na leitura sobre o que – e como – ela sofre), mas tudo indica que esta é uma pessoa tomada pela culpa.
Mas do quê? De fato, racionalidade e inconsciente se misturam nessa relação entre as duas mulheres que, mesmo que não seja abusiva, por vezes beira o tóxico.
Por fim, há outra camada importante no romance de Mariana Salomão Carrara que envolve outro aspecto que é sempre jogado nas costas das mulheres: a responsabilidade pelo cuidado. Madalena e Francisca cuidam de Ana, que cuida de Catarina, ao passo que é também requisitada para cuidar da sogra.
Em trecho inspirado da obra, Mariana escreve: “Madalena gritou mais, que eles sempre conseguiam tudo, de alguma forma achavam uma mulher que cuidasse, que se fôssemos um farol estaríamos sempre piscando no amarelo se fôssemos placa de trânsito seríamos CUIDADO se fôssemos um aviso no portão seríamos CUIDADO se fôssemos um adesivo numa encomenda seríamos CUIDADO”.
Aparentemente, os homens não conseguem lidar com nada disso, e é mais fácil seguir acreditando que, às mulheres, é natural cuidar dos outros – embora, quase sempre, isto signifique esquecer de cuidar de si mesmas. Por isso, é até aliviador que, em Não fossem as sílabas do sábado, as mulheres encontrem caminhos mais leves para trilhar.
NÃO FOSSEM AS SÍLABAS DO SÁBADO | Mariana Salomão Carrara
Editora: Todavia;
Tamanho: 168 págs.;
Lançamento: Junho, 2022.
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