A edição 2022 do Prêmio São Paulo de Literatura condecorou duas obras como as melhores do ano: Terrapreta, da escritora paulista Rita Carelli, e Uma Tristeza Infinita, do escritor gaúcho Antônio Xerxenesky. Ambos recebem um prêmio de R$ 200 mil, que é o maior valor pago entre os reconhecimentos da área literária no Brasil.
Uma Tristeza Infinita se trata de um romance muito comovente, que relata a rotina de um médico psiquiatra francês que vai trabalhar em uma clínica na Suíça que recebe pessoas com enfermidades mentais oriundas da Segunda Guerra Mundial. Aos poucos, o médico vai vendo um novo método possível de tratamento (por medicamentos) sendo introduzido como uma alternativa terapêutica a estes sujeitos – o que também gera muita desconfiança.
O resultado é uma obra densa que aborda as diferentes nuances (e mistérios) acerca dos sofrimentos mentais, que permanecem até hoje. Uma Tristeza Infinita parece ainda falar, com muita sensibilidade, sobre a solidão de quem passa por este tipo de enfermidade.
Xerxenesky vive em São Paulo e, além de escritor, é editor, tradutor e professor. Conversamos com o autor sobre o que significa ganhar o Prêmio São Paulo e sobre outras questões referentes à sua obra.
ESCOTILHA » Antônio, você foi um dos vencedores do Prêmio São Paulo deste ano. Tendo em vista o atual cenário da cultura no Brasil, e pensando especialmente no contexto dos escritores brasileiros, o que significa ganhar este prêmio?
Antônio Xerxenesky » Sempre falei que o tipo de livro que eu escrevia — estranhos, fora de conexões mais imediatas e diretas com a nossa realidade — não ganhava prêmio. Tive que engolir minhas palavras.
É incrível receber o prêmio, não apenas pelo reconhecimento que nunca cogitei receber, como pelo auxílio financeiro. São raríssimos os autores que vivem da sua produção literária, e eu com certeza não sou um deles, e vivo me equilibrando entre um emprego fixo e outros trabalhos paralelos para pagar as contas e sustentar um lindo filho. É ótimo ter esse apoio em dinheiro para respirar aliviado e separar um tempo maior para a criatividade.
De modo geral, como você vê o mercado editorial brasileiro hoje, sob o ponto de vista dos autores? E como você avalia as políticas públicas atuais para a literatura?
Vivemos quatro anos de desmontes de políticas de incentivo à leitura, e por pouco desviamos de uma taxação terrível nos livros. Estou otimista que o novo governo irá restaurar o apoio à cultura. Mas, seja como for, o que complica o mercado editorial brasileiro, no momento, é o aumento absurdo do preço do papel, encarecendo muito o produto final. Essa é uma dificuldade do novo escritor: como convencer o leitor a apostar em um nome desconhecido quando o livro médio está custando 70 reais?
Você também atua como tradutor e editor, além de ministrar cursos. Como estes trabalhos se conjugam com sua rotina como escritor?
“Um prêmio facilmente vira uma prisão”
Antônio Xerxenesky
Costumo dizer que tenho rotina para tudo, menos para ser escritor. A prioridade é sempre fechar as contas do mês. Mas faz mais de ano que não posso reclamar — só tenho feito trabalhos que me dão prazer, em especial dar aulas e editar. Quase toda a minha carreira literária envolveu bicos infames dos quais prefiro nem comentar.
E o clichê é verdadeiro — lecionar é também aprender. Sinto que quando ajudo meus alunos a encontrarem a própria voz, e quando refletimos coletivamente sobre formas narrativas, aprendo muito com eles. Então isso retroalimenta a minha produção ficcional.
Em Uma Tristeza Infinita, você retrata um psiquiatra francês trabalhando em uma clínica na Suíça no tratamento de pacientes com traumas por terem vivenciado os horrores da Segunda Guerra e, em especial, por terem testemunhado o nazismo. O quanto você tinha o contexto brasileiro em mente ao elaborar esta trama, já que vemos hoje muitas semelhanças com uma grande parcela da população afiançando um governo de extrema direita?
Eu tinha o contexto brasileiro pulsando muito forte na cabeça quando escrevi uma trama situada na Europa dos anos 1950, por mais maluco que seja isso. Sempre soube que Bolsonaro ia passar, mas o radicalismo autoritário e a política de morte que ele trouxe consigo ia permanecer, com apoiadores cada vez mais fanáticos.
Esse tipo de acontecimento histórico parece se repetir ciclicamente no Ocidente. Voltar ao passado foi uma maneira de procurar respostas para o presente, por isso mergulhei em leituras sobre o processo de desnazificação e da vida do pós-guerra. E também busquei pensar nos impactos individuais de questões coletivas. Não é normal que todos nossos amigos busquem auxílio psiquiátrico ou psicológico. A depressão e a ansiedade não são contagiosas como um vírus. No entanto, existir em um Brasil que pareceu ter seu futuro cancelado provocou essa reação. E, mais uma vez, não saberia estudar isso diretamente, em uma trama que se passa nos dias de hoje. Precisei fazer o exercício de imaginação de voltar a esse ponto específico do passado, ainda que com pequenos ajustes temporais. Meu livro não é um romance histórico, embora às vezes seja vendido como um. É um livro sobre estar vivo aqui e agora.
O livro finaliza com agradecimentos aos psiquiatras que passaram pela sua vida e, em entrevistas, vi que você comenta que muito do que aborda no livro atravessa sua experiência. Queria que você comentasse sobre como se dá esta proximidade/ afastamento com o tema de um livro em suas obras.
Tenho muita dificuldade em me expor sem filtros, em falar dos anos (mais de década, na verdade) que sofri diferentes enfermidades psiquiátricas, e de toda a gama de medicamentos que usei. A ficção é a maneira de encenar essas questões sem o imediatismo das redes sociais, sem a violência de ser moldado pelo algoritmo. É possível sair de si para entrar em si.
Curiosamente, recebi alta e estou livre de drogas psiquiátricas. Alguém há de apontar que a escrita pode ter tido um efeito terapêutico.
Você pode comentar sobre seus planos futuros dentro da literatura?
Ganhar um prêmio é lindo, claro, mas acende um sinal de alerta. Será que, inconscientemente, meu próximo romance não será talhado para continuar sendo elogiado, premiado etc.? Um prêmio facilmente vira uma prisão. A única certeza que tenho sobre meu próximo livro, do qual escrevi apenas 10 páginas, é que preciso retomar a esquisitice. Estou relendo o autor que mais li na vida, Philip K. Dick, como inspiração. Também estou em uma maratona de obras da autora coreana Bae Su-Ah, cuja estranheza onírica permeia até seus trabalhos mais realistas. Esse parece ser o meu caminho.
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