Após cerca de um ano da aquisição, o Instituto Moreira Salles (IMS) coloca em acesso público parte da coleção Cyrillo Hercules Florence, acervo privado que era propriedade da família do artista e inventor franco-monegasco Hercule Florence (1804 – 1879), sobre o qual pouco se sabia. Ao todo, 526 desenhos, aquarelas e pinturas, trabalhos pouco conhecidos até então, já podem ser vistos através do site do IMS.
Inovador nas artes e na ciência, Florence foi pioneiro na invenção da fotografia. Nascido na França, mudou-se para o Brasil em 1824, onde participou da Expedição Langsdorff pela Amazônia. Ali, Florence registrou imagens detalhadas da flora, fauna e cultura local, criando registros visuais dessa viagem. Esse mergulho amazônico foi responsável direto na descoberta da fotografia pelo francês, que precisou criar um processo fotográfico que utilizava sais de prata sensibilizados ao sol, semelhantes às técnicas fotográficas de contemporâneos como William Fox Talbot e Louis Daguerre.
O trabalho conduzido pelo IMS desde a aquisição é minucioso, incluindo a fixação de informações como título original da obra e sua tradução, confirmação da data e do local em que cada desenho, aquarela e pintura foram produzidos, anotações de pesquisa, histórico de utilização de cada obra e revisão de menções a povos indígenas. Coordenadora de Iconografia do IMS, Julia Kovensky exalta o trabalho do instituto, que se preocupa em atualizar informações, mas deixando claro quais modificações foram feitas, além de deixar o original, de modo que pesquisadores tenham acesso ao todo. “Esse esforço de transparência é importante, para que as pessoas possam entender quais foram os critérios adotados”, indica. Na catalogação nomes de cidades foram atualizados (como Campinas, anteriormente chamada de Vila de São Carlos), bem como as referências a determinados povos indígenas a partir da autodenominação desses grupos. Essa parte específica da empreitada teve assessoria da antropóloga Maria Luísa Lucas, professora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP.
Da Expedição Langsdorff à internet
Entre 1825 e 1829, Hercules Florence integrou a expedição liderada pelo naturalista alemão Georg Heinrich von Langsdorff, registrando com grande precisão e de modo frenético o máximo possível dos detalhes da paisagem natural do Brasil, bem como de seus habitantes. Florence havia visto um anúncio no Diário do Rio em busca de um desenhista substituir Johann Moritz Rugendas, que abandonaria o grupo e seguiria sozinho.
Na segunda etapa do empreendimento de Langsdorff, Florence se junto à equipe e partiu de Porto Feliz, em São Paulo, em uma aventura fluvial por mais de 13 mil quilômetros pelas regiões que hoje compreendem os estados de São Paulo, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Pará. O trabalho do francês nessa viagem compõe grande parcela da coleção de desenhos e aquarelas de seu acervo, com uma rica descrição de povos indígenas com os quais cruzou pelo caminho. Pinturas corporais, adornos e demais detalhes estão reproduzidos nas peças, compondo uma representação muito fiel de povos como os Guató, Bororo, Apiaká, Terena e Kaingang.
Hercules Florence integrou a expedição liderada pelo naturalista alemão Georg Heinrich von Langsdorff, registrando com grande precisão e de modo frenético o máximo possível dos detalhes da paisagem natural do Brasil.
Mas nas obras de Florence também se encontram desenhos de pessoas negras, realizados quando a expedição, patrocinada pelo czar Alexandre I, com apoio de d. Pedro I, passou nas redondezas de Diamantino, no Mato Grosso. “Chamam muita atenção quatro desenhos de pessoas negras, nos quais Florence descreve a suposta etnia”, conta Gustavo Aquino dos Reis, um dos responsáveis do Instituto Moreira Salles na catalogação. “São negros Congo, Cabinda e Rebolo. É interessante perceber que, através de um traço sutil, o artista logrou evidenciar características específicas dessas nações africanas”.
A chegada do conjunto de obras à internet é um marco importante na preservação e divulgação do trabalho do artista e inventor. Em apenas outras duas ocasiões as peças foram exibidas ao público. A primeira foi em Hercule Florence e o Brasil, exposição que trazia recorte de desenhos e aquarelas, além das invenções fotográficas de Florence, e que ficou à mostra na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2010. A segunda ocorreu em 2017, com Hercule Florence: le nouveau Robinson, ocorrida no Nouveau Musée National de Monaco, e que fazia referência ao livro Robinson Crusoé, de Daniel Defor, responsável por despertar o desejo em Florence de viajar cruzando os oceanos.
Para Julia Kovensky, facilitar o acesso do público à obra do autor ainda pouco conhecido é de suma importância. “Em nome desse compromisso, foi feito um esforço singular para acelerar a etapa da catalogação dos desenhos, reunindo e atualizando informações, [de modo a] disponibilizar esse primeiro conjunto no menor prazo possível”, contou. As obras já estão disponíveis no site do IMS e podem ser vistos clicando aqui.
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