Nas últimas 72 horas, o Brasil ganhou uma impressionante coleção de críticos de arte. Algo de dar inveja a qualquer país. De cada canto do território, cidadãos íntegros levantavam bandeiras e crucifixos para vociferar indignados, com toda a sua bagagem de história da arte, contra a exposição LGBT Queermuseu.
Do alto de sua superioridade e castidade cristã, os novos críticos de arte, tão letrados em Goya, Bosch, Schiele, Caravaggio e outros, certamente promoveram ou promoverão o mesmo nível de boicote a museus como Louvre, Prado, Tate e Reina Sofia. Isso se, de fato, tiverem algum costume de ir ou levar seus filhos a museus – aqui ou fora do Brasil.
Isso se, em suma, também tiverem algum costume de visitar exposições tanto de arte clássica quanto contemporânea (não por acaso, em pesquisa divulgada pela Gazeta do Povo em 2015, para 51% da população curitibana, ir ao museu é considerada uma atividade ruim).
Queermuseu contava com um acervo de 270 obras focadas na temática LGBT, um conceito condutor importante e nunca antes visto na América Latina. Uma espécie de representatividade somente encontrada no continente europeu e norte-americano – aqueles que chamamos de primeiro mundo, lembra?
Apesar da visita de promotores do Ministério Público do Rio Grande do Sul à Queermuseu após seu abrupto fim ter confirmado que, de todo seu acervo, apenas cinco obras tinham cunho ou apelo sexual, a enxurrada de críticas em cima de obras absolutamente descontextualizadas de seu propósito não chegaram ao fim.
Artistas conceituados, com trabalhos expostos mundo afora, como Adriana Varejão, têm seus nomes jogados injustamente na lama, como se pregassem exatamente o contrário do que tentavam denunciar.
O que percebemos aqui é uma guinada política e cultural cada vez mais vil e reacionária, nos moldes da revolta contra a “arte degenerada” de 1937, cunhada pela Alemanha nazista para definir arte moderna.
Um dos tantos famigerados textões que li na internet sobre o caso evidenciava um ponto muito importante que quero ressaltar aqui: “Museu não é playground, nem Igreja”.
A exposição foi encerrada precocemente após ataques virtuais e presenciais de setores conservadores e cristãos, sob a acusação de pedofilia, zoofilia, intolerância religiosa e apologia ao sexo (alguém lembra que nos anos 70, década onde grande parte dos críticos ferrenhos da exposição era criança, tínhamos o fenômeno astronômico das pornochanchadas?
Por acaso todos viramos atores pornôs devido a elas?). Nada de novo no horizonte: afinal, os comunistas homossexuais querem corromper nossa juventude. Portanto, enquanto é inadmissível que a arte critique a religião, a religião pode e deve apontar dedos, ofender e supostamente condenar ao inferno a quem quiser, certo?
Da mesma forma que o videogame GTA (Grand Theft Auto) não formou uma geração de assassinos e atiradores em massa, Queermuseu, uma exposição temporária, com duração prevista para pouco mais de dois meses, não formou ou formará crianças com ímpetos zoofílicos e homossexuais.
O que percebemos aqui é uma guinada política e cultural cada vez mais vil e reacionária, nos moldes da revolta contra a “arte degenerada” de 1937, cunhada pela Alemanha nazista para definir arte moderna, que mais tarde seria banida de todas as formas pelo regime ditatorial.
Em meio ao caos político em que vivemos, a capengante existência do Ministério da Cultura denuncia a situação das artes no país, refletida numa horda de gente que parece incentivar e comemorar cada vez mais cada corte de gastos que envolve a arte no território.
Ressalto aqui nessa coluna, mais uma vez, que cultura e educação andam juntas. Negar que a diversidade, a pluralidade e a diferença fazem parte da sociedade brasileira desde seus primórdios, tanto quanto a religião, aniquila um potencial cultural imenso. Aniquila o trabalho de pessoas, aniquila a reputação de artistas conceituados, aniquila a liberdade de expressão.
Não me aprofundarei tanto no preceito de que a homofobia unida ao fundamentalismo religioso exponente no Brasil são os condutores principais de toda essa revolta, pois seria repetir algo que beira o além do óbvio. Temo somente que essa situação não seja nem o começo, e que o fundo do poço esteja bem mais abaixo – cada vez mais se alimentando de ódio ao próximo travestido de religião, pronto para nos sugar.
Em um momento conturbado como esse, parafraseio o trabalho quase profético do artista curitibano AMORIM, exposto em Queermuseu e posteriormente censurado: “A bíblia sem limite – uns entendiam tudo e outros, nada“.
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