Diante da perda da filha, a catalã Ignacia Uranga se viu inconsolável. Aos seus olhos, somente uma gravidez poderia apaziguar a dor de uma mãe em luto. Foi então que, em 1908, nasceu María de los Remedíos Varo: a terceira e mais nova de três filhos foi assim batizada para remediar a tristeza de toda a família. No fim das contas, o nome do meio acabou se tornando a maneira escolhida por si própria para se apresentar ao mundo e às artes. O caráter aventureiro da artista foi incentivado pelas frequentes mudanças devido o trabalho do pai. Ainda pequena, foi morar no Marrocos, depois, em Madrid.
Aos 15 anos, manifestava imensa coragem, dando o primeiro e fundamental passo em um cenário predominantemente marcado por homens no país: candidatou-se a uma vaga na mais próspera e conceituada academia de artes espanhola, a Real Academia de Bellas Artes de San Fernando, que tinha em seu currículo de formação pintores como Pablo Picasso. Aceita, tornou-se uma das primeiras mulheres da história a estudarem no instituto.
Mais tarde, em 1935, já inserida no movimento surrealista de André Breton, dividiu mesas de discussão com o conterrâneo e colega catalão, Salvador Dalí, e outros artistas de renome da época. Por que, então, ao estudarmos o movimento, nunca ouvimos falar de Remedios ou qualquer outra artista do sexo feminino?
O Surrealismo foi o primeiro movimento na história da arte a incitar a participação de mulheres. No entanto, apesar do fundamental passo, o que propunha não era exatamente cumprido: estas eram dificilmente convidadas a participar de importantes decisões do manifesto, além de serem frequentemente retratadas como objetos catalizadores da criatividade masculina. Essas artistas, portanto, passaram a trilhar seus caminhos sozinhas: Remedios foi uma delas.
Em uma vida conduzida por problemas cardiovasculares, também teve sua trajetória marcada por fugas. Primeiro, da Guerra Civil Espanhola e de seu ditador Francisco Franco.
Depois, quando já estabelecida em Paris, fugitiva da ofensiva nazista de Hitler. Assim como outros artistas anarquistas da época, encontrou no México refúgio para concretizar os mundos lúdicos e fantasiosos que pintava.
É importante primeiro compreender sua trajetória, pois ela influi toda sua obra.
O universo onírico de Remedios
A breve passagem da artista pelo movimento surrealista foi crucial para determinar sua essência. A partir da década de 1930, as diferentes fases de seu trabalho, ao contrário de outros artistas, não mudam substancialmente, mas sim tecnicamente.
Ao compararmos, por exemplo, “Ojos Sobre La Mesa” (1935) e “Papilla Estelar” (1958), percebe-se claramente a evolução de sua habilidade, mas não o abandono de seu misticismo. Em uma mistura de ciência e fantasia, de alquimia e magia, Remedios cria personagens em atmosferas particulares e irreais.
Assim como outros artistas anarquistas da época, encontrou no México refúgio para concretizar os mundos lúdicos e fantasiosos que pintava.
Sua pintura poderia, ainda, passar despercebida a olhos desinteressados e fugazes, já que remete a estilos de séculos passados, por vezes semelhante até à arte medieval. Suas personagens, muitas femininas, fogem do movimento surrealista que as objetificava: aqui são misteriosas magas, anciãs e bruxas, donas de seus mundos oníricos e pessoais.
Ao conhecer sua história, é também interessante perceber e identificar Remedios nos personagens de suas próprias obras, como em “Rupturas” (1955), onde parece retratar sua fuga do Velho Continente para exilar-se no México, terra que a acolheu e foi mãe da mais concreta fase de seu trabalho.
Falecida precocemente aos 55 anos, apesar de praticamente apagada da história oficial do surrealismo, Remedios deixou um legado próprio – e temos o dever de desfrutar dele.
Para conhecimento mais abrangente da artista, seu site oficial permite um mergulho no conjunto da obra.
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