A premissa básica de um reality show – e o segredo para que ele obtenha algum tipo de sucesso e repercussão – está em algo bastante óbvio: a expectativa de que um programa como este espelhe a realidade. Ou seja, a grande sacada frente aos produtos de ficção, como as novelas, é que nos realities nós conseguiríamos, com maior ou menor fidelidade, ver algo que, a princípio, não aconteceria na televisão.
Tudo isto é bastante claro e nítido, mas aí a coisa começa a se tornar complexa. Como sabemos, de fato, que aquele cara que assinou um contrato comprometendo a ceder a sua imagem (e sua vida) a um reality show está sendo ele mesmo? Afinal, se nem na chamada “vida real” somos nós mesmos (pois estamos, naturalmente, sempre “vestindo” e “desvestindo” papéis de acordo com as situações que vivenciamos), como esperar que alguém aja com espontaneidade quando sabe que está sob os olhos de milhões de espectadores?
E aí, novamente, atento à grande sacada de formatos como o do Big Brother: em alguma medida, a promessa é que as câmeras, por estarem ligadas 24 horas por dia, capturarão nem que seja algum segundo da emoção genuína que emerge naquele minúsculo momento em que os participantes “esquecem” que estão sendo olhados e agem de forma espontânea. Daria para dizer, inclusive, que assistimos aos cerca de 3 meses anuais deste programa justamente na expectativa de beber esta gota de realidade. E uma mísera gota de realidade, de fato, valeria para nós tanto quanto meses ou anos de ficção.
Arriscaria dizer que é isso o que, de alguma maneira, explica a sobrevivência há tantos anos de programas tidos como inúteis, como verdadeiros poços de interatividade fútil, de um interminável blá-blá-blá sobre coisas desimportantes: o fato de que, depois de meses em que pouca coisa acontece, quando menos esperamos, recebemos esta tão espera gota de algo que é essencial. No BBB 17, não foi diferente. Depois de uma temporada inteira considerada fraca (com participantes inexpressivos, pouco afeitos ao debate e ao confronto, e uma protagonista clara desde os primeiros episódios), finalmente pudemos assistir a um momento que se configurou como uma pequena pérola.
Refiro-me aqui ao momento assistido durante a última semana do Big Brother, que se desdobrou a partir de situações repletas de tensão e de confronto. Como todos acompanharam – mesmo sem assistir a um único episódio do famoso “programa sobre nada” -, as últimas semanas do BBB 17 giraram em torno da gravidade da relação entre os participantes Marcos e Emilly, que protagonizaram um namoro que, como sempre lembrava o apresentador Tiago Leifert, repercutia muito o que acontece no “mundo real”. No processo de esquecimento das câmeras, Marcos acabou por revelar detalhes de uma personalidade bifurcada, dividida entre alguém inteligente e educado e um homem controlador, machista, com tendências a se tornar agressivo. A cada situação que o desagradava, como ser indicado a um paredão, Marcos chegava mais próximo da perda do controle, respingando suas reações, inclusive, na namorada Emilly (e provocando a reflexão no público: isso é amor ou é cilada?).
Os minutos transmitidos ao vivo no BBB 17 foram momentos raros de sororidade feminina, baseados no apoio sem julgamento, no conforto que as mulheres trazem umas às outras nos momentos mais difíceis.
Com a proximidade do término do programa, o descontrole emocional de Marcos foi se agravando e assistimos a cenas que exigiam uma resposta rápida da Rede Globo: Marcos e Emilly discutindo, Marcos com dedo em riste no rosto de Emilly enquanto a encurralava numa parede, Emilly reclamando de dores nos pulsos, enquanto Marcos dizia que também levou unhadas. A resposta da emissora não foi rápida, mas finalmente uma atitude foi tomada. Uma denúncia e investigação da Delegacia da Mulher culminou na expulsão do participante Marcos. A notícia, obviamente, só poderia ser dada de uma maneira: ao vivo, para que todos nós pudéssemos beber, em tempo real, das reações das pessoas que restaram na casa.
E assim se deu – e, curiosamente, pudemos ser testemunhas deste que, na minha opinião, talvez seja o momento mais importante de BBB 17 e quiçá das últimas edições do programa. Tiago Leifert entrou ao vivo para contar às três finalistas – as participantes Emilly, Vivian e Ieda – as razões da saída de Marcos. A câmera, naturalmente, foca no rosto de Emilly, explorando o mecanismo quase intuitivo da busca pela emoção enquanto ela escapa do rosto. Já dizia o pesquisador Peter Brooks, um dos maiores estudiosos sobre o realismo, enquanto as palavras podem disfarçar ou simular sentimentos, acreditamos que o corpo sempre diz a verdade.
Em seguida, a interação entre apresentador e participantes foi encerrada mas, oportunamente, a câmera continuou “dando aquela espiadinha”, na expressão perpetuada pelo antigo apresentador Pedro Bial. E aí emergiu aquele momento-chave, o santo Graal pelo qual esperamos durante três meses: um momento de encontro entre as três finalistas, todas mulheres, que entraram ali numa situação de verdadeira sororidade, apenas para remeter a um termo resgatado pelo movimento feminista.
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Em suma, sororidade diz respeito à irmandade intrínseca entre as mulheres, que se apoiam e se entendem enquanto iguais, não importam as circunstâncias. Remete, por isso mesmo, a algo que retoma a registros ancestrais das mulheres, por vezes perdidos em tempos de relações líquidas, fugazes. Há uma série de pequenos movimentos contemporâneos que buscam resgatar esta sensação de irmandade, como os grupos de apoio como o MADA (que unem as “mulheres que amam demais”, ou mulheres propensas a se envolver em relacionamentos destrutivos), ou a existência das doulas, que acompanham partos, repetindo papéis que outrora eram desempenhados apenas pelas familiares das gestantes.
Os minutos transmitidos ao vivo no BBB 17 foram momentos raros de sororidade feminina, baseados no apoio sem julgamento, no conforto que as mulheres trazem umas às outras nos momentos mais difíceis. Tento reproduzir, na limitação das palavras, aquilo que aconteceu: ao saber que o namorado estava expulso do programa, Emilly chora desesperadamente. Está desnorteada. Não entende por que tudo aquilo está acontecendo, nem parece compreender a gravidade da situação (as mulheres que passam por situações limítrofes de violência geralmente não entendem). Ela está então em companhia de outras duas participantes – Ieda, que tem 70 anos, e poderia ser avó de Emilly, que só tem 20 anos, e Vivian, uma jovem adulta, já mais esclarecida.
A história no programa destas três mulheres foi de certo atrito e até de rancor (Emilly e Vivian, em alguma medida, protagonizaram uma rivalidade indireta em torno de Marcos), e talvez seja justamente esta história que traz mais peso a esse momento de sororidade. As diferenças são postas de lado (e não apagadas) e estas mulheres prontamente apoiam-se mutuamente. O conforto é físico (elas se abraçam), mas também é verbal. Seus tons de vozes são calmos, não acusatórios, confortadores, ainda que firmes.
As falas, inclusive, merecem registro. Ieda lembra a Emilly: tudo que é bom ou é ruim acaba na vida (uma lição de uma simplicidade absurda, mas muito difícil de ser introjetada de fato). Já Vivian aponta: Emilly não tem condições de julgar o que está vivendo, e tirar o namorado do programa é uma forma de protegê-la e também de protegê-lo, antes que algo pior aconteça (nas entrelinhas de sua fala, outra lição: só nos tornamos adultos na medida em que compreendemos que todos os papéis, seja da vítima, seja do violentador, podem muito bem ser desempenhados por cada um de nós. Ninguém está imune de se tornar aquilo que menos deseja).
É claro que a leitura do cinismo também é possível. Muitos classificaram o momento como encenação, de que Vivian e Ieda agiram como agiram por imaginar que estavam sendo observadas. Mas isso pouco importa, pois a cena existe e ela, por si mesma, carrega uma mensagem. E talvez seja por isso que, ano após ano, um público tão grandioso continua assistindo a programas tão sobre nada (será?) como Big Brother Brasil.