Vivemos na época da desconfiança. E ela se espalha por todas as áreas da vida cotidiana: na política, nos relacionamentos pessoais, na concepção que fazemos da essência humana, na crença que (não) temos na possibilidade de funcionamento de todo tipo de instituição. Alguns pensadores diriam que este é um sintoma de tempos pós-modernos, nos quais a fé em algo maior que nós (seja nas forças transcendentais ligadas à religiosidade, seja na crença de que os governos estão aí para nos proteger) parece inevitavelmente arruinada.
Esta descrença de tudo, é claro, atinge também o jornalismo, que é uma instituição fundamental e pulsante da vida social. Se, por essência, o jornalismo deveria servir para nos resguardar dos abusos das demais instituições, na prática, acreditamos que esta profissão, com o tempo, equivaleu-se a uma indústria como qualquer outra, a serviço de funções capitalistas voltadas ao lucro. Por isso mesmo, nossa desconfiança passou a se direcionar especialmente às empresas mais poderosas e hegemônicas, as quais – costumamos acreditar – têm mais possibilidades de causar danos à coletividade. Nosso ódio, portanto, tende a se direcionar mais às grandes indústrias de informação que às pequenas, as quais consideramos mais “puras”.
Neste cenário, portanto, a Rede Globo se situa enquanto a vidraça mais visada pela população que hoje descrê dos meios de comunicação. As razões são incontáveis, e remetem desde aos problemas da fundação da emissora, aos discursos históricos de denúncia aos excessos cometidos pela Globo, até ao medo inevitavelmente associado a qualquer veículo que comunique a um público tão imenso. Em outras palavras: mantemos uma mistura paradoxal de pavor e fascínio com empresas desse porte.
Estabeleço este contexto para pensarmos em alguns aspectos da interessante entrevista veiculada no programa Conversa com Bial com uma das poucas unanimidades dentro da Rede Globo: o repórter Caco Barcellos. Espécie de encontro entre gigantes, o episódio do talk show configurou como um momento para uma discussão muito pertinente sobre o jornalismo e sua função social. Bial e Caco e são, obviamente, dois profissionais de clara qualidade e qualquer conversa entre os dois merece ser escutada.
A Rede Globo se situa enquanto a vidraça mais visada pela população que hoje descrê dos meios de comunicação. As razões são incontáveis e remetem desde aos problemas da fundação da emissora.
No entanto, o foco deste texto é outro: o fato de que Caco Barcellos parece um profissional imune ao discurso (negativo) que se associa à emissora. Se coletivamente enxergamos que a Globo nos causa danos – ideia perpetuada em bordões do tipo “Globo mente” ou “O povo não é bobo, abaixo à Rede Globo” –, é curioso observar que esta visão não respinga apenas em poucos de seus profissionais e programas. Dentre eles, está o próprio Caco e seus diversos trabalhos já realizados na emissora (o mais famoso, talvez, seja Profissão Repórter, no ar desde 2006).
Por isso mesmo, a entrevista de Bial com Caco Barcellos, embora absolutamente interessante, assume um certo tom de marketing da Globo. Há quase como um endeusamento deste repórter – de óbvia e reconhecida competência – e uma busca em associar sua imagem (e sua reputação) com a da própria emissora. No programa, os elogios ao profissional são rasgados, e eles vêm do próprio apresentador, do outro convidado (o jornalista e escritor Sérgio Rodrigues, uma espécie de ativista da língua portuguesa, e autor do site Melhor Dizendo) e da própria plateia (formada, em grande parte, pelos “alunos” que passaram pela liderança de Caco Barcellos no programa Profissão Repórter). A perspectiva da entrevista é claramente da humanização do famoso repórter: ele é provocado a lembrar sua infância em Porto Alegre, chegando mesmo a mencionar, visivelmente constrangido, detalhes sobre sua iniciação sexual.
Mas, como quase sempre acontece, o mais intrigante deste diálogo se dá nas brechas, no que talvez seja menos evidente. A entrevista é aberta com um debate no qual se assume francamente a crise da credibilidade jornalística (menciona-se pouco, é claro, que essa crise atinge especialmente veículos do porte da Globo). Sendo assim, Caco Barcellos desenvolve um raciocínio que difere liberdade (que ficaria restrita aos donos das empresas e seus interesses) e independência (a possibilidade de fazer um serviço que serve à população). Neste sentido, Caco destaca que sempre teve independência no seu trabalho – num discurso que, em alguma medida, é cuidadoso e mesmo elogioso à empresa em que trabalha (ainda que certamente não deva ser a vivência de todos os seus colegas).
Em outro momento, Caco Barcellos assume-se enquanto repórter, estabelecendo a distinção entre este ofício (o encarregado em garimpar o fato, em simplesmente mostrar, sem associar suas opiniões ao que mostra) e o do jornalista (que deve, justamente, conectar e interpretar os fatos coletados pelo repórter). É claro que esta é uma distinção um tanto ingênua, pois há várias nuances que se misturam nestas duas vertentes – poderia-se lembrar, por exemplo, que um repórter que escolhe entrevistar uma fonte e não outra já está, em alguma medida, fazendo uma escolha subjetiva.
Não obstante, a fala de Caco tenta estabelecer seu lugar de fala: ele (diferente de outros profissionais – exatamente os que mais geram ojeriza no público) seria nada mais que um mero “tradutor” do mundo lá fora, realizando seu trabalho sem grandes interferências da toda poderosa Globo. Mais uma vez, esta é uma questão bem mais complexa do que faz parecer sua fala, pois todos os profissionais do jornalismo (repórteres ou não) estão inevitavelmente associados às suas experiências e visões de mundo. Curiosamente, a maior repercussão da entrevista nas redes sociais ocorreu nos momentos em que Caco Barcellos deixa clara uma opinião: quando ele fala sobre os colégios fundados por Brizola no Rio Grande do Sul e assume sua admiração pelo político, ainda que não se associe a nenhum partido.
Em resumo, se podemos dizer que hoje tudo vira commodity, nem os profissionais e suas reputações parecem escapar desta lógica. Mas talvez este seja um preço baixo a ser pago para a manutenção de um profissional deste porte – e para a qualidade do jornalismo como um todo – dentro da maior emissora do país.