Nas últimas semanas, houve duras críticas, tanto por telespectadores quanto por artistas, ao comportamento recente do apresentador Silvio Santos, que proferiu discursos intolerantes em uma gravação vazada de seu programa. Situações como essas são recorrentes na TV brasileira, não apenas em programas de auditório, como em programas humorísticos e também nos popularescos jornais policiais. Afinal, esse é o papel da nossa mídia?
De acordo com pesquisa feita em 2016 pelo projeto “Violações De Direitos na Mídia Brasileira”, que acompanhou 28 programas de rádio e TV em um período de 30 dias, foram cometidas, no período analisado, 4.500 violações de direitos, 8.232 infrações às leis brasileiras, 7.529 infrações à legislação multilateral, e 1.962 desrespeitos a normas autorregulatórias, a exemplo do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros.
Contudo, dificilmente essas transgressões resultam em punições para os profissionais e emissoras responsáveis, a menos que atinjam grande repercussão na mídia. Como normalmente não é o caso, cultivamos diariamente uma imprensa televisiva que, ao invés de apenas informar os fatos para sua audiência, busca formar consciências a partir de profissionais que utilizam de sua subjetividade para incorporar impressões pessoais nos fatos.
Mas a TV é uma concessão pública, ou seja, um espaço cedido temporariamente pelo Estado. Dessa forma, a programação das emissoras ativas deveria seguir algumas regras básicas, dentre elas a de respeitar os direitos humanos, certo? Então, por que isso não acontece?
“A legislação brasileira é frouxa e há pouco interesse, tanto do Congresso quanto do Executivo, de corrigir inúmeros erros e vícios, como a locação de horários para igrejas, por exemplo. Muitos programas faturam audiência com a exploração de preconceitos, poucos parecem preocupados em adotar uma posição mais esclarecedora a respeito”, explica o jornalista Maurício Stycer, repórter e crítico do UOL.
A legislação brasileira é frouxa e há pouco interesse, tanto do Congresso quanto do Executivo, de corrigir inúmeros erros e vícios, como a locação de horários para igrejas, por exemplo.
A falta de fiscalização da justiça também permite a homogeneização da mídia brasileira pelos oligopólios privados e conservadores, que difundem uma programação engessada sem a preocupação de, por exemplo, divulgar a cultura nacional e regional. Essas atitudes confrontam as regras postas na Constituição de 1988 para concessões públicas, mas são ignoradas pelo próprio Estado, talvez porque muitos políticos também sejam concessionários públicos ou sócios dessas emissoras.
E a situação só piora com a “venda” do discurso de ódio como liberdade de expressão pelos comunicadores para um público que, por falta de uma mídia com vozes e ideias mais democráticas, o toma como verdadeiro. A identificação do público com esses discursos é facilitada por alguns fatores, como o porte informal desses profissionais que utilizam da linguagem popular para se aproximar da audiência.
Essa estratégia fica explícita nos programas policialescos ao redor do país que, ao cobrir casos criminais, utilizam um modelo menos ‘quadrado’ para promover a espetacularização da segurança pública. O apresentador busca no distanciamento da ‘imagem de jornalista’ a aproximação com o público. Dessa forma, seus discursos subjetivos são assimilados mais facilmente pela audiência, que encontra nesses profissionais uma representação de si mesma na TV.
Mas, geralmente, é nesses programas que se encontram os maiores índices de violações aos direitos humanos na TV brasileira. O site Mídia Sem Violações de Direitos, além de abrir espaço para denúncias, expõe um ranking de jornais policialescos mais denunciados. São exemplos de violações cometidas por eles: exposição indevida de pessoas e famílias, disseminação de discurso de ódio e preconceito, violação do direito de silêncio e incitação ao crime e à violência.
“O problema está na questão de ética que envolve os profissionais e também as empresas de comunicação. Jornalismo está relacionado à divulgação dos fatos, das informações que são de interesse da sociedade. Questões particulares não são de interesse social, são de interesse privado”, aponta Fabiana Siqueira, professora de Jornalismo pela UFPB.
Jornalismo está relacionado à divulgação dos fatos, das informações que são de interesse da sociedade. Questões particulares não são de interesse social, são de interesse privado.
Essas transgressões podem ser encontradas também em programas humorísticos, tendo em vista que muitos comediantes acreditam que a piada deve sempre ter um alvo. É no humor que o ato de vestir o discurso de ódio como liberdade de expressão se torna mais latente, exemplificado pelos discursos de humoristas que, quando confrontados e processados judicialmente pelo teor intolerante de suas piadas, atestam censura.
Em entrevista ao Morning Show da rádio Jovem Pan, o humorista Diogo Portugal contou que a censura pode causar um bloqueio no processo criativo desses profissionais. “O comediante não deveria pensar duas vezes antes de contar uma piada. […] Se o humor não cutucar, ele fica muito sem sal e não desce bem. O jornalismo é a mesma coisa, dá audiência com esses conflitos”, relatou.
Porém, estamos vivendo em um momento que as causas sociais estão alcançando espaço e virando pauta do que é discutido atualmente na sociedade. Desse modo, as violações aos direitos humanos perpetuados por programas televisivos não estão sendo ignoradas como antes. Exemplo recente disso é o caso de Silvio Santos que, mesmo sendo considerado um ícone da TV brasileira, não é – não mais – imune a críticas.
Esse é o pontapé inicial para que comportamentos antiéticos na TV brasileira sejam combatidos, se não por iniciativa da Justiça, por iniciativa nossa, consumidores desse conteúdo. E mesmo que esses discursos não nos atinjam diretamente devemos ser empáticos com o outro, que pode ser oprimido, humilhado e denegrido por uma plataforma que, a princípio, deveria apenas nos garantir um conteúdo democrático e diversificado. Sem a intenção de formar os nossos ideais, mas de informar o suficiente para que nós mesmos fôssemos capazes disso.