Talvez você, espectador, ainda não tenha notado conscientemente, mas há uma certa lógica que se repete na grade das emissoras, e que diz respeito aos públicos a que a TV se destina. Por exemplo: nos dias de semana, as manhãs costumam ser pensadas para as mulheres (com programas destinados a elas, como Mais Você e Encontro com Fatima Bernardes), que supostamente estão em casa cuidando dos filhos enquanto os maridos trabalham. Os jornais do fim de noite têm caráter mais sisudo que os matutinos e vespertinos, pois tradicionalmente eram os horários em que os “chefes de família” estavam, agora sim, em frente à TV. As atrações mais maduras e ousadas (como séries, novelas, talk shows) costumam ser exibidas nos horários que adentram a madrugada, quando os pequenos já estão dormindo.
Há ainda uma outra lógica relacionada não apenas a faixas etárias e perfis demográficos, mas que fala também de classe social. A TV tida como mais popular costuma ser reservada à hora do almoço (nos policialescos como Balanço Geral) e, sobretudo, ao fim de semana. Talvez reflita a ideia de que esta parte da população (classes C, D e E), que enfrenta distâncias longas na batalha diária pela sobrevivência, só consiga ligar o aparelho nestes dias e horários. Basta uma breve espiada nas programações das emissoras para vermos que, de uma forma ou outra, com estratégias bem diferentes, elas tentam oferecer ao público programas com características semelhantes: todos são destinados a falar com essa chamada “grande massa” – essa camada da população na qual ninguém quer se incluir e na qual, paradoxalmente, todos se incluem.
Por isso mesmo, cabe aqui uma tentativa de reflexão sobre qual a ideia de popular que essas atrações repercutem. Um breve passeio na TV de domingo mostra que essa TV “generalista” é uma marca em todas as emissoras: Hora do Faro e Domingo Show da Record, Domingo Legal e Programa da Eliana no SBT, Domingão do Faustão na Globo. Todos, em alguma medida, falam a esse chamado grande público e guardam várias marcas sobre como visualizam este público a quem pretendem se destinar. Por exemplo: no Domingo Legal, os patrocinadores são empresas que vendem materiais de construção e máquinas de fazer sacolé, e há um quadro inteiro de uma competição financiada pela Havan, empresa varejista popular de Santa Catarina.
Mas voltemos à questão de fundo: o que significa, para essas atrações, falar para as classes mais populares? A pergunta é importante pois a ideia que se faz do popular é múltipla e potencialmente controversa. Se, por um lado, os críticos enxergam um menosprezo do público nos programas tidos como populares, há sempre a defesa de que estes formatos criam uma conexão direta e honesta com a audiência de uma forma que outras atrações mais “sofisticadas” não conseguem.
No fim de 2016, uma entrevista com Geraldo Luis (que já se tornou um símbolo daquilo que há de mais popularesco na TV) ao Programa do Porchat trouxe pistas interessantes sobre como os produtores das atrações deste estilo enxergam o seu trabalho. Para o apresentador da Record, os programas populares falam a linguagem do povo, simples, de uma forma que a TV mais “erudita” não consegue. Por exemplo: se as entrevistas feitas em Conversa com Bial com nomes importantes da cultura e da ciência trazem alguma instrução ao seu público, por outro lado, o programa é falho na sua tentativa de criar uma ligação com a população mais simples, a quem falta a bagagem necessária para acompanhar este tipo de discussão. Deste modo, os defensores da TV “popular” levantam a bandeira de que falam para uma audiência que, sem ela, permanece alienada.
São questões delicadas, é claro, e dizem respeito à dificuldade que temos, desde sempre, em conciliar nas mídias os três pilares: o caráter informativo (a TV precisa falar do mundo real, tirar o espectador de uma perspectiva de alienação); o caráter de entretenimento (a TV serve, sim, como alívio àqueles que passam apertos em tantas outras partes da vida); e, por fim, o caráter educativo (tudo isso deve ser conciliado para ensinar algo útil). A TV popular de fim de semana, por fim, pretende acrescentar mais uma “perna” nesta tríade: a TV serve como conforto e forma de legitimação de uma identidade cultural compartilhada por certos grupos; ela tenta, dessa forma, refletir a realidade das classes populares, fazendo com que as pessoas se sintam parte daquilo a que assistem.
Quando categorizamos um programa sob a égide do popular, há muito a ser pensado, refletido e, possivelmente, mudado, adaptado. Uma TV que repercute a miséria popular assim o faz porque vê seu público sob um olhar da miséria.
A grande questão talvez seja de que forma que essa TV popular pretende fazer isso. Examinemos, rapidamente, aquilo que é exibido nos programas de fim de semana. As atrações mais frequentes são as que oferecem algum tipo de assistencialismo, alguma solução rápida e milagrosa para aqueles que sofrem (e que geralmente são rotulados como “guerreiros”, “lutadores”, em uma espécie de lógica indulgente que mais prejudica que auxilia os ajudados).
A regra da TV popular é a emoção, não a razão, quase como se reivindicasse o direito a comover seu público com emoções simples e fáceis, numa espécie de descarrego da tensão do dia a dia. Por isso mesmo, a TV popular é alarmista (tira vantagem da sensação de insegurança coletiva) e repleta de verdades rasas (como discursos inflamados e demagógicos sobre as soluções dos problemas da população).
Há ainda uma tentativa de “caráter educacional” na TV popular voltada às competições de conhecimento geral as quais os participantes se submetem em busca de prêmios. No Domingo Legal, por exemplo, no quadro “Comprar é bom, levar é melhor ainda”, a patrocinadora Havan distribui 50 mil reais em mercadorias da loja caso a família participante responda corretamente a uma série de questões. Em um dos domingos, uma das questões que precisavam responder era sobre a pronúncia correta da palavra “iogurte”, cuja resposta o participante acabou errando. Em alguma medida, havia, nesta questão, um reflexo do que a TV popular, em geral, entende ser o seu público, quase como se estivesse ali um tom de ironia e mesmo de menosprezo (provavelmente involuntário) sobre o seu público.
Em suma, quando categorizamos um programa sob a égide do popular, há muito a ser pensado, refletido e, possivelmente, mudado, adaptado, evoluído. Uma TV que repercute a miséria do povo assim o faz porque vê seu público sob um olhar da miséria. Há exceções, obviamente (colocaria como um exemplo aquilo que era feito no extinto Esquenta!, na Globo), mas ainda falta muito nas emissoras para conseguirem, de fato, produzir uma TV popular que não desmereça sua audiência.