É sempre irresistível falar sobre Alejandro G. Iñárritu. Em 7 longas, o excelente diretor mexicano conquistou reconhecimento mundial abordando de maneira visceral temas como resiliência, tormento psicológico e o sofrimento humano, tendo recebido duas vezes o Oscar de melhor diretor (Birdman e O Regresso).
Em seus três primeiros longas, Iñárritu desenvolve um profundo ensaio sobre aquilo que une todos os seres vivos: a morte. Não lançados sob este título, mas como define o diretor, a “trilogia da morte” traz Amores Brutos, 21 Gramas e Babel, filmes que discutem o fim da vida a partir de diferentes óticas. Este texto marca o início de um especial de três semanas sobre a trilogia, começando pelo primeiro deles, Amores Brutos, lançado em 2000.
Escrito por Guillermo Arriaga, o filme acompanha três diferentes histórias. A primeira delas, como a própria montagem indica, é “Octavio y Susana”, e conta o drama de Octavio (Gael García Bernal), rapaz que, insatisfeito com a forma abusiva que seu irmão Ramiro (Marco Pérez) trata a esposa Susana (Vanessa Bauche), decide juntar dinheiro para fugir com a moça, a quem tenta secretamente seduzir. Para isso, coloca seu rottweiler, Cofi, para participar de rinhas de cachorros.
Em paralelo, Daniel (Álvaro Guerrero), editor de uma revista, abandona sua esposa e filhas para viver com sua amante, a modelo Valeria (Goya Toledo). A relação do casal se torna tensa e caótica quando o cão de Valeria, Richie, desaparece por um buraco no chão do luxuoso apartamento onde moram.
A terceira história é a do andarilho El Chivo (Emilio Echevarría), que caminha pela cidade acompanhado de seus vários cachorros, empurrando um carrinho de lixo. El Chivo vive isolado em um insalubre galpão, na companha apenas dos animais.
É uma reflexão visceral sobre como nos aproximamos da morte e como ela não é só uma. Por meio de nossas escolhas, matamos nosso espírito, nossas convicções e nossa moral, por mais vivos que estejamos.
O longa de Inárritu trabalha com a ideia de que a morte é inevitável, porém, as escolhas autodestrutivas das pessoas fazem com que ela esteja sempre próxima. Diferentemente de outros filmes do diretor, nos quais apequena seus personagens diante de situações apresentadas pelo mundo e pela sociedade, Amores Brutos é enfático ao apontar que, no mundo real, não há fuga das consequências das próprias escolhas.
Esta concepção se converte em um filme de extrema crueza, com o mexicano praticamente grudando a câmera no rosto de seus personagens e a movimentando a todo instante, colocando-a inclusive na altura dos cães e não hesitando em mostrá-los mortos e ensanguentados. A direção de arte de Brigitte Broch e a fotografia de Rodrigo Prieto se complementam com ambientes sujos, de tons escuros, pobremente iluminados e nada convidativos, revelando um pessimismo estético perfeito para a premissa da obra.
Isso cria uma atmosfera ideal para que as três histórias gradativamente se unam, o que acontece sem que ninguém de fato interaja. Além de já unir todos pelas mesmas escolhas autodestrutivas, roteiro de Arriaga praticamente resolve a montagem do filme, brincando com o tempo dos acontecimentos e estrategicamente posicionando integrantes de uma das histórias no contexto da outra, criando uma conexão automática na mente do espectador.
Além disso, cada história paralela envolve pessoas de diferentes idades e classes sociais, permitindo uma união que, simbolicamente, forma o ciclo de uma vida e todos os erros, aprendizados e mudanças que com ele vêm. Sendo assim, o objetivo do filme não é criar heróis. Por melhores que sejam as intenções de Octavio, Iñárritu faz questão de lembrar o quão perigoso o rapaz pode ser – ele coloca cães para brigarem -, frequentemente associando-o a tons de vermelho (perigo) e brilhantemente fazendo-o encarar a câmera enquanto planeja sua fuga definitiva, desafiando e intimidando o até mesmo o espectador.
Outra grande sacada do diretor é iniciar diversas cenas com primeiros planos de objetos que, ao final da sequência, se revelam como a grande motivação da ação dos personagens. Neste sentido, o arco do personagem de Bernal é claro. Se no início sua motivação era a sobrevivência de sua família -ilustrada com comida e objetos de bebê -, seu desfecho é apenas motivado pelo dinheiro.
A partir de narrativas de deslealdade e crueldade com animais, o longa trabalha o limite da possibilidade de empatia, mergulhando de maneira visceral nas histórias de seus personagens, mas nunca permitindo que sintamos compaixão por eles, exceção, não por acaso, feita a El Chivo. O andarilho é a personificação do amor e da busca por redenção.
Com suas cenas quase sempre iniciadas por planos de cães – pelos quais tem enorme compaixão, diferentemente dos outros -, o idoso é o único personagem cujas escolhas não levam à morte, mas sim a um novo recomeço. A mensagem é clara: Chivo já passou por tudo o que os outros já passaram, e aprendeu, com o tempo, a se arrepender e tomar decisões melhores. Nada é determinado, tudo é adaptável.
Amores Brutos é o primeiro longa-metragem de Alejandro Iñárritu e indiscutivelmente o melhor. É uma reflexão visceral sobre como nos aproximamos da morte e como ela não é só uma. Os 153 minutos de projeção revelam que, por meio de nossas escolhas, matamos nosso espírito, nossas convicções e nossa moral, por mais vivos que estejamos.
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