Conhecida por seu excelente trabalho como diretora de fotografia, a curitibana Heloisa Passos nos convida a uma imersão nos dramas de sua própria família. Eneida, documentário exibido no festival É Tudo Verdade, tem o nome de sua mãe, a história de sua mãe, a dor de sua mãe e uma sensação indigesta coletiva.
No longa-metragem, integrante da mostra competitiva do festival, a diretora ajuda a mãe a entrar em contato com sua filha mais velha, com quem rompeu laços há mais de duas décadas, sem que, inicialmente, tenhamos plena compreensão do que teria levado a isso.
Em Eneida, Heloisa Passos é diretora, mas também personagem de um drama familiar que, à sua maneira, pode ser percebido por muitos de nós. Como não vemos sua irmã, resta ao público tentar recompor essa colcha de retalhos para compreender em que momento a relação entre mãe e filha se deteriora.
A câmera de Heloisa tem um olhar fixo para Eneida, personagem que dá título ao documentário. Um de seus méritos é adentrar a trama (e o drama) sem permitir se contaminar por ele, um exercício duríssimo para quem também conta a história de um pedaço apartado de si.
Para retratar a ausência e compor essa importante parte de Eneida, a diretora busca nas memórias, tangíveis e intangíveis, fragmentos capazes de preencher o vazio. Fotos, uma história sobre um berço, sobre uma casa antiga, as memórias de uma sobrinha. Tudo é material para dar contexto e substância ao filme.
Nos breves momentos que a diretora quebra seu compromisso com o público e parece tomar partido na trama (e, repito, no drama), o que surge não é o rompimento de um pacto. Na realidade, esses breves respiros sugerem mais um comprometimento com a verdade dos fatos, isto é, a impossibilidade da negação do eu, do que a toca. Em última instância, do que a torna humana.
Há, é claro, quem possa ver nesses detalhes a contaminação do acordo tácito entre cineasta e público, que espera ver, ali, para si, a crueza das imagens sem a interferência de quem as capta. Prefiro, aqui, aceitar que não estamos na selva e que seu realizador não interfere na história, apenas se esforça em capturá-la, aceitando, para isso, seu papel de coadjuvante.
A trama do documentário parece, por vezes, previsível, que já a vimos em outro lugar. No entanto, o desfecho tem sua peculiaridade, e evidencia o caráter humano da obra, que nos aproxima de pessoas que, às vezes, estão mais próximas pelos dramas do que pela geografia. E, não menos importante, tenta amenizar as penas de dona Eneida, afinal, “dor compartilhada é dor amenizada”[1].
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[1] Frase atribuída a Santo Agostinho.
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