A cinebiografia Spencer, belo e melancólico filme do cineasta chileno Pablo Larraín sobre a princesa Diana, abre com uma sequência digna de um thriller. Ainda que, nas entrelinhas, perceba-se um sutil tom de ironia. Em Sandringham, misto de palácio e castelo de seis andares, situado na costa sudeste da Grã-Bretanha, vemos a chegada de um comboio militar, transportando pequenos containers dentro dos quais acreditamos haver armas. Mas, não. Quando são abertos, o que se vê é uma enorme variedade de frutas, verduras e legumes, imensas lagostas e outras especiarias. São os ingredientes dos banquetes que serão servidos ao longo dos três dias de celebração do Natal da família real britânica.
Como a comida terá papel central nos festejos dos Windsor, nada mais natural que os militares que entregaram os ingredientes sejam sucedidos por um verdadeiro exército de cozinheiros e seus assistentes, encarregados de preparar tudo que será servido em cada uma das refeições, planejadas nos mínimos detalhes como uma operação de guerra.
Larraín dá a essa sucessão de cenas um caráter cerimonial, mas ela não é meramente ilustrativa, para falar de luxo e opulência.
A sequência é entrecortada por imagens de um pequeno Porsche esportivo, que atravessa os campos. Na direção, está Diana (Kristen Stewart), princesa de Gales, e ela está só. Os festejos reais de Natal nem começaram ainda e Larraín quer nos dizer algo essencial a respeito de sua protagonista. Ela não faz parte daquele ritual milimetricamente organizado e está muito perdida. Em vários sentidos. O filme vai mostrar como se libertou da vida que ela mesma escolheu, uma existência que dela fez uma estrela, mas que também a estava matando aos poucos.
Embora a casa de sua família paterna, os Spencer, seja daquela região e ela tenha crescido por ali, Diana não sabe onde está. Tem um mapa nas mãos, mas não consegue chegar ao seu destino, para encontrar o marido e os filhos, que a aguardam para os festejos natalinos.
Em uma cena muito significativa para entendermos a estatura de sua figura pública, a princesa para em posto de gasolina à beira da estrada e entra no café para pedir socorro. Pergunta onde está aos presentes, que a olham incrédulos. Parece não ter noção de que é a mulher mais famosa do mundo, amada dentro e fora do seu país. Não está perdida apenas geograficamente, mas também existencialmente.
Já nessas cenas iniciais, Kristen Stewart, uma atriz que divide opiniões há anos, não parece estar interpretando, ou imitando, a sua personagem. Ela é Diana, da forma quase sussurrada de falar, oscilando entre o hesitante e o voluntarioso, à postura corporal, esquiva em sua timidez, mas naturalmente graciosa, elegante. Um desempenho antológico, sem qualquer exagero, que deve lhe render prêmios.
Spencer está muito conectado com outro filme de Larraín, Jackie, de 2016, no qual Natalie Portman, indicada ao Oscar por sua atuação, vive a primeira-dama Jackie Kennedy durante a semana que se seguiu ao assassinato do presidente norte-americano John Kennedy, em 1963. Trata-se de um brilhante estudo de personagem, sobre uma figura pública vivendo uma situação extrema, assim como Diana, em Spencer. Mas o mergulho na subjetividade da princesa me parece mais profundo, desconcertante, por mais que muito já tenha sido dito e mostrado sobre a princesa de Gales.
A grande sacada do filme é a escolha do roteiro de Steven Knight (de Senhores do Crime) de focar tão somente em três dias, dez anos após seu casamento com o príncipe Charles. É uma espécie de anti-conto de fadas, que nos revela como sua vida tornou-se triste, desprovida de qualquer encantamento ou conexão afetiva, a não ser quando está com seus filhos, William e Henry.
A grande sacada do filme é a escolha do roteiro de Steven Knight (de Senhores do Crime) de focar em apenas três dias, dez anos após seu casamento com o príncipe Charles.
No filme, vemos uma princesa, uma mulher poderosa e amada pelo mundo, sendo tratada como uma criança mimada e mal-comportada, sob a vigia austera de um militar, o major Gregory, vivido por Timothy Spall (de Turner), que cumpre sua missão como se estivesse a lidar com um inimigo de Estado e não com a mãe do herdeiro do trono. Por isso, faz muito sentido que Diana seja assombrada pelo fantasma de Ana Bolena, segunda esposa do rei Henrique VIII, decapitada a mando do rei, sob a acusação de traí-lo, quando o monarca deseja se casar com sua terceira mulher, Jane Seymour. Alguém coloca na cama de Diana uma biografia da rainha, como uma espécie de ameaça, e a princesa cai na armadilha.
Diana encontra algum consolo em sua dama de companhia, e confidente, Maggie (Sally Hawkins, de A Forma da Água), que acaba afastada de suas funções quando percebem que a funcionária alimenta o que a família real acredita serem delírios indisciplinados da princesa.
Spencer não traz nenhuma informação nova sobre Diana. Mas o filme não se alimenta de fatos, mas de sua abordagem poética, intimista e, em alguns momentos, no limite do surrealismo – como na cena do jantar à luz de velas em que ela acredita estar engolindo as pérolas do colar, idêntico ao que Charles havia presenteado à amante, Camilla Parker-Bowles. É um mergulho em sua alma atormentada, e não na sua intimidade. Por isso, o que se vê na tela é tão importante.
O extraordinário desenho de produção de Guy Hendrix Dyas (de A Origem) faz do palácio de Sandringham, com seus infindáveis corredores, repletos de portas, e excessos de toda a sorte, da mobília aos lustres, espelhos, obras de arte, tapetes, uma metáfora visual do aprisionamento luxuoso de Diana.
Essa lógica também vale para o figurino, assinado por Jaqueline Durran, vencedora do Oscar por Adoráveis Mulheres e Anna Karenina. Diana se utilizava de suas roupas ora como chamarizes e veículos para sua vaidade, ora como armadura para se proteger. Larraín traz isso para a tela.
A belíssima trilha sonora, entre o jazz e o erudito, de Jonny Greenwood, da banda Radiohead, impede uma leitura melodramática da história a qual assistimos. Mais parece um conto fantasmagórico, uma história de terror, fotografada brilhantemente por uma mulher, Claire Mathon, do maravilhoso Retrato de uma Mulher em Chamas. Sua câmera revela um universo sobre e em Diana, criando um filme para se assistir com muita atenção e mais de uma vez.