Os processos de produção do jornalismo sempre interessaram ao cinema. Desde clássicos como Cidadão Kane e A montanha dos sete abutres até obras mais recentes e não menos relevantes, são muitos os filmes que buscaram revelar as maneiras pelas quais o jornalismo tem sido produzido nas diferentes culturas – quase sempre sob um olhar de crítica e denúncia, e algo normativo, como se quisessem indicar “como o jornalismo deve ser”.
A profissão do jornalista, portanto, foi representada em muitas obras cinematográficas que apontaram os vícios e projetaram um fascínio à prática, quase sempre associada a aventuras, dilemas éticos, riscos e contato com personalidades célebres. Talvez o destaque do instigante O Abutre se dê pela sensibilidade de capturar um tema urgente e muitas vezes discutido de forma diluída dentro do próprio jornalismo.
Na história contada em O Abutre, um sujeito chamado Lou Bloom (personificado por um Jake Gyllenhaal surpreendente, cuja própria configuração física revela continuidade ao aspecto faminto do personagem) sobrevive praticando pequenos crimes até encontrar um nicho de atuação ainda a ser explorado: torna-se um cinegrafista independente, que filma flagrantes violentos pela cidade e vende para uma emissora televisiva que, desfavorecida em audiência, tenta explorar conteúdos mais vivos, pulsantes.
O leitor não precisa ir muito longe para ver conexões com o telejornalismo brasileiro, cada vez mais cheio destes “flagrantes” (e, prestando atenção, podemos notar que eles são frequentes não apenas nas emissoras consideradas menores, como Record e SBT). Na maioria das vezes, estas imagens chegam ao receptor sob uma promessa um tanto questionável de um jornalismo mais “interativo” ou “participativo” – termos que talvez revelem mais as intenções de marketing das emissoras do que exatamente uma participação efetiva do público.
Com sagacidade, O Abutre evidencia a falácia no raciocínio de que ‘uma imagem não mente’: o trabalho do cinegrafista e da produtora do programa é basicamente encaixar um sentido possível nas câmeras – nem que, para isso, seja necessário editar estas imagens ou mesmo adulterar elementos das cenas.
O trabalho executado por Lou Bloom cai como uma luva para as emissoras sedentas por um conteúdo barato gerado pelos espectadores. O que falta de social skills para Bloom – um sujeito levemente desajustado às regras implícitas para a convivência em sociedade, que repete constantemente frases de manuais de autoajuda esvaziadas de sentido– sobra de intuição em relação ao que afinal interessa aos veículos para os quais colabora.
A frase da produtora Nina Romina, vivida por Rene Russo, traduz sem qualquer sutileza aquilo que sua emissora busca: o vídeo perfeito equivaleria a uma “mulher gritando e correndo rua abaixo com a garganta cortada”. Para quem ficou escandalizado com as imagens exploradas no filme e se sentiu desconectado da audiência do telejornal, basta lembrar de quantas vezes paramos para ver as imagens “chocantes” de acidentes, assaltos gravados por câmeras de seguranças e coisas semelhantes.
A importância de O Abutre se conecta sobretudo à atualidade da discussão levantada pelo filme. O questionamento mais óbvio talvez seja sobre um discurso, já consolidado no senso comum, de que “uma imagem vale mais que mil palavras”. O filme suscita a reflexão sobre a premissa igualmente batida de que “as imagens não mentem”. Com sagacidade, O Abutre evidencia a falácia deste raciocínio: o trabalho do cinegrafista e da produtora do programa é basicamente encaixar um sentido possível nas câmeras – nem que, para isso, seja necessário editar estas imagens ou mesmo adulterar elementos das cenas.
Ao final das contas, o produto comercializado por Lou Bloom é a privacidade. Em tempos de superexposição nas redes sociais, talvez fosse interessante que refletíssemos sobre o quanto estamos propensos a concedê-la voluntariamente.
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