É bem mais interessante refletir sobre Victoria e Abdul: o Confidente da Rainha, simpático e comovente filme histórico em cartaz nos cinemas brasileiros, à luz da complexa obra do seu diretor, o britânico Stephen Frears. Dono de uma filmografia extensa, e bastante plural, o cineasta ganhou notoriedade internacional em 1985, quando chegou aos cinemas um de seus melhores trabalhos, a comédia dramática Minha Adorável Lavanderia.
Causou alvoroço ao redor do mundo a história de amor gay inter-racial que desafiou a conservadora Grã-Bretanha de Margaret Thatcher, ao revelar com cores fortes, humor e romantismo, toda a ebulição multicultural que existia no país à revelia da mão de ferro da primeira-ministra. O longa tinha brilhante roteiro assinado pelo renomado escritor Henif Kureishi, e trazia um ainda pouco conhecido Daniel Day-Lewis no papel de Johnny, jovem branco da classe média trabalhadora que se apaixona por Omar (Gordon Warnecke), rapaz muçulmano de origem paquistanesa.
É interessante pensar que 32 anos após o lançamento de Minha Adorável Lavanderia, Frears, duas vezes indicado ao Oscar de melhor direção, por Os Imorais (1991) e A Rainha (2007), volta a discutir temas como diversidade cultural e racismo. Victoria e Abdul conta a história verídica, e por muitos anos invisibilizada pela coroa, da improvável relação entre a rainha Victoria (a genial Judi Dench), já no fim da vida, e o indiano de fé islâmica Abdul (Ali Fazal), que veio à Inglaterra, no fim do século 19, com a missão de entregar um presente do governo de seu país à monarca, e acaba se tornando seu melhor amigo.
Recém-indicada ao Globo de Ouro e ao SAG, prêmio do Sindicato dos Atores, Judi Dench reencontra sua personagem em seus derradeiros anos.
Narrador habilidoso, elegante, e excelente diretor de atores, Frears, hoje aos 76 anos, já não faz o cinema urgente e desafiador que o celebrizou na década de 1980, graças a filmes como Sammy e Rosie (1986) e O Amor Não Tem Sexo (1987). Percebe-se, no entanto, que, embora tenha se tornado mais palatável e convencional na forma, ele não abriu mão do olhar crítico com que aborda histórias de seu país, traço evidente nos mais recentes A Rainha e Filomena (2013), também com Judi Dench. Aliás, a grande dama inglesa dos palcos e das telas, em Victoria e Abdul, interpreta o papel da longeva rainha pela segunda vez – a primeira foi, há exatos 20 anos, em Sua Majestade, Mrs. Brown, pelo qual recebeu a primeira de suas sete indicações ao Oscar.
Recém-indicada ao Globo de Ouro e ao SAG, prêmio do Sindicato dos Atores, Dench reencontra sua personagem real em seus derradeiros anos, quando já é uma anciã entediada e impaciente com os protocolos da monarquia, e desiludida com seus herdeiros. O ano é 1887 e, na cidade indiana de Agra, dois jovens locais são escolhidos para viajar até Londres para levar à rainha uma valiosa moeda local. Ao chegar, tanto Abdul quanto Mohammed (Adeel Akhtar) estranham bastante os costumes da realeza britânica. Ao entregar o presente, Abdul desafia as regras e olha a monarca nos olhos. A ousadia acaba cativando Victoria, que o transforma em conselheiro, a iniciando no idioma hindi e na religião islâmica. A decisão causa extremo desconforto na corte, que passa a ver Abdul como um intruso arrivista, que estaria se aproveitando da senilidade da monarca.
Embora a história de Abdul já fosse até certo ponto conhecida, a complexidade do seu relacionamento com Victoria só se tornou pública em 2010, quando os diários do indiano foram encontrados. Frears, ao falar da Inglaterra do fim do século 19, início do 20, também parece estar a discutir tensões raciais e religiosas no mundo contemporâneo. É muito familiar a intolerância da qual Abdul se torna vítima ao ousar não apenas olhar nos olhos da rainha, mas com ela estabelecer um vínculo de confiança, intimidade, a fazendo conhecer e respeitar sua cultura e fé. Daí, fica evidente que a inquietude do diretor de Minha Adorável Lavanderia continua viva e o seu cinema segue relevante.
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