Não é de hoje que a AMC tem sido um imenso refúgio de boas produções. Mad Men, Breaking Bad e The Walking Dead são marcos na história da tevê norte-americana e mundial. Obviamente, ser vanguarda tem seu custo, e no caso do canal ele geralmente é ser a grande vidraça, cobrado para manter sua verve. Mas os executivos do canal não são bobos.
Você dificilmente verá uma série ser uma má aposta, ainda que Rubicon, Low Winter Sun e Feed the Beast não tenham passado de uma única temporada. Se pudesse utilizar uma palavra para resumir a AMC, usaria ousadia. Depois do sucesso comercial, de público e crítica adquirido com a adaptação dos quadrinhos The Walking Dead, a emissora assumiu o risco de encarar uma nova empreitada, desta vez com uma parceria com Seth Rogen e Evan Goldberg, amigos de infância e fãs fervorosos de Preacher, um HQ publicado pela Vertigo, selo da DC Comics, entre os anos de 1995 e 2000.
A ideia de adaptar não pode ser vista como um caça-níquel, já que até chegarmos ao ponto em que isso tornou-se viável precisamos ver a tevê a cabo norte-americana ganhar força, além de que adaptar um quadrinho como Preacher (ou The Walking Dead) não é coisa barata.
Por trás de uma pretensa roupagem de terror, há inúmeros questionamentos aos valores morais e sobre a natureza da fé.
Preacher parte de um momento anterior ao que vemos nos quadrinhos de Garth Ennis e Steve Dillion, o que causou furor nos mais puristas fãs. A série acompanha a vida de Jesse Custer, um pastor com um passado bem sombrio que cuida de uma pequena comunidade na cidade de Annville, Texas. Acontece que Jesse atravessa um momento em que questiona sua fé e a fé nas pessoas, cogitando a possibilidade de abandonar a comunidade.
Durante esse momento conturbado, Jesse é possuído por uma força denominada Gênesis, que lhe confere poderes superiores, uma espécie de força divina que dá a ele um poder de convencimento gigantesco. Jesse esforça-se em deixar seu passado para trás, o que é dificultado quando sua ex-namorada, Tulip (Ruth Negga), chega na cidade, quase ao mesmo tempo que um irlândes estranho chamado Cassidy (Joseph Gilgun, de Misfits).
Por mais excêntrico que possa parecer, a série e os quadrinhos são muito interessantes, ainda que sejam verdadeiramente distintos. O HQ não tinha o fundo sóbrio e reflexivo que o seriado possui, focando mais em ser um humor grotesco, irônico. Independente da opção dos produtores por dar um tom mais sóbrio ao show, Preacher apresenta um ritmo truncado no início. O piloto é um episódio lento, e se o espectador não tiver paciência para encarar os três primeiros episódios (que são igualmente lentos), dificilmente chegará ao fim da primeira temporada.
Do quarto episódio em diante, Preacher torna-se mais ágil. Cassidy e Tulip são dois ótimos coadjuvantes, e até roubam a cena em alguns episódios, principalmente o personagem interpretado por Gilgun. Dominic Cooper, o protagonista, também apresenta um personagem profundo, muito interessado em exercer sua fé, mas que não esconde suas camadas seculares. Negga também merece destaque, com sua Tulip ao mesmo tempo exalando feminilidade e aspereza, carregada de uma fúria que a coloca como uma personagem firme, segura e empoderada.
Por trás de uma pretensa roupagem de terror, há inúmeros questionamentos aos valores morais e sobre a natureza da fé. Não se trata, porém, de um projeto estupendo, mas é brilhante em suas limitações enquanto série, desde que o espectador aceite o contrato de que programa e HQ são produtos diferentes.
Preacher foi renovada para mais trezes episódios, que serão exibidos no próximo ano.