O roteirista e diretor Zach Cregger, revelado com o surpreendente Noites Brutais (2022), consolida em A Hora do Mal (Weapons, no original) uma trajetória que o coloca entre os autores mais interessantes do novo cinema de horror estadunidense — aquele que compreende o gênero não como simples gerador de sustos, mas como ferramenta de desconstrução do medo coletivo e das fissuras sociais que o alimentam.
Durante boa parte de suas duas horas de duração, o filme ocupa um espaço de rara eficácia: é, ao mesmo tempo, inquietante, misterioso, irônico e emocionalmente preciso. Cregger domina o território ambíguo onde o horror deixa de ser apenas uma manifestação sobrenatural para se tornar expressão do trauma e da paranoia de uma sociedade em colapso moral. Mas, na reta final, o diretor cede à tentação de explicar o inexplicável — e o que até então funcionava como metáfora aberta e pulsante se desfaz em um fechamento literal e redundante. O mistério, que deveria reverberar, é sufocado pela vontade de esclarecimento.
A Hora do Mal é um filme composto por partes, e essa escolha formal é central para compreender tanto suas virtudes quanto suas limitações. Dividido em capítulos nomeados a partir dos personagens, o longa alterna pontos de vista e temporalidades, montando um mosaico que obriga o espectador a recomeçar a cada nova sequência. A cada cartela com um novo nome — “Justine”, “Paul”, “Ben” —, o olhar se desloca, e a narrativa se reconfigura.
Essa fragmentação é um gesto que ecoa autores como Robert Altman ou Paul Thomas Anderson, cineastas que também trabalham com narrativas corais em que o sentido se constrói no entrelaçamento das experiências individuais. Em Cregger, porém, o dispositivo serve a outro propósito: produzir inquietação pela ausência de continuidade, frustrar o desejo de linearidade e, ao mesmo tempo, humanizar o enigma.
O filme se sustenta sobre uma premissa intrigante — uma sala de aula inteira de crianças desaparece misteriosamente às 2h17 da madrugada, sem deixar vestígios. No entanto, o verdadeiro enredo não está na busca por respostas, mas nas reações de quem tenta decifrar o ocorrido. Em cada personagem, há um reflexo diferente do medo: o medo da culpa, o medo da impotência, o medo de olhar para o próprio abismo.
É nesse ponto que A Hora do Mal se revela um filme de atores. Julia Garner, como a professora Justine, encarna uma tensão permanente entre a empatia e o desespero. Há algo de maternal e ferido em sua presença: uma doçura interrompida, como se a culpa pela tragédia coletiva fosse também uma culpa íntima, inconfessável. Alden Ehrenreich, no papel do policial Paul, oferece uma composição igualmente ambígua — é a figura da autoridade que investiga, mas que também carrega a violência do sistema que representa. Ele não é o herói, mas o vetor de uma ambiguidade moral que atravessa todo o filme. Já Josh Brolin, com sua habitual sobriedade, funciona quase como uma âncora narrativa: seu corpo em cena traz gravidade e memória, como se o horror atual ecoasse velhas culpas da América profunda.
Mas é em Amy Madigan, no papel da tia Gladys Lilly, que A Hora do Mal encontra seu ponto de virada mais desconcertante. À primeira vista, ela parece apenas uma figura secundária, uma parente excêntrica que surge em meio ao caos, oferecendo calma e estrutura. No entanto, à medida que o filme avança, Gladys revela-se o verdadeiro eixo de horror — uma presença hipnótica e manipuladora que, por trás do afeto doméstico, esconde um poder sombrio.
Mas é em Amy Madigan, no papel da tia Gladys Lilly, que A Hora do Mal encontra seu ponto de virada mais desconcertante.
As atuações, contidas e precisas, encontram ressonância na mise-en-scène de Cregger. Os enquadramentos amplos e a fotografia dessaturada constroem uma paisagem emocional que remete a um país exaurido, onde o mal não é um intruso, mas uma energia difusa que impregna o cotidiano. O horror não vem de fora: ele é o ar que se respira.
Embora o filme nunca se torne abertamente político, A Hora do Mal é atravessado por uma inquietação moral e social que o aproxima de obras como Corra! (de Jordan Peele) e Hereditário (de Ari Aster). A escola, o subúrbio, o policial, a professora, as crianças desaparecidas — todos são signos de uma América em ruínas, onde o trauma coletivo é reencenado sob novas formas. O desaparecimento dos jovens pode ser lido como uma alegoria da infância perdida da nação, uma sociedade que se nega a amadurecer, que foge de si mesma no meio da noite.
A insistência em encontrar respostas — por parte dos personagens e, por fim, do próprio filme — parece revelar o medo que o país tem do vazio, da ausência de sentido. O mal, em Cregger, não é um demônio externo: é uma construção cultural, um espelho da culpa ocidental. Há, em sua abordagem, algo de cosmológico: o mal como estrutura, como repetição inevitável. O filme parece sugerir que toda tentativa de compreender o inexplicável está fadada a fracassar — e, quando Cregger finalmente tenta explicar, trai a própria força poética de sua proposta.
É justamente na reta final que A Hora do Mal se perde. O diretor, talvez temendo deixar o público à deriva, se empenha em amarrar os fios soltos, preenchendo as lacunas com informações que, em vez de esclarecer, empobrecem. A elipse dá lugar ao discurso; o silêncio, à didática. O resultado é um filme que começa como experiência sensorial e termina como relatório explicativo. O que antes era vertigem se transforma em decodificação — um erro comum em obras que confundem ambiguidade com incompletude.
Ao tentar dar sentido a tudo, Cregger reduz a potência simbólica do seu próprio mistério. Ainda assim, a falha é reveladora: mostra o risco de se criar no limite entre o popular e o autoral, entre o cinema de gênero e o cinema de ideias. É o tipo de desequilíbrio que, paradoxalmente, confirma a ousadia de um autor disposto a experimentar dentro das convenções do horror contemporâneo.
Mesmo com seu desfecho irregular, A Hora do Mal é um filme que merece ser visto — e debatido. Ele reafirma a vitalidade do horror como linguagem crítica, como modo de pensar o presente através do medo e da fabulação. O que Cregger propõe é, afinal, uma reflexão sobre o próprio ato de olhar: até que ponto precisamos compreender para temer? O cinema, como o medo, talvez funcione melhor quando não se explica. E o verdadeiro terror, parece nos dizer A Hora do Mal, está justamente no que permanece fora de foco — naquela zona cinzenta entre o que vemos e o que imaginamos.
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