Em um Brasil cada vez mais atravessado por discursos religiosos e pela busca incessante por visibilidade, A Voz de Deus, documentário dirigido por Miguel Antunes Ramos, surge como uma das obras mais instigantes da Mostra Competitiva Brasileira do 14º Olhar de Cinema – Festival Internacional de Curitiba.
Fazendo sua estreia nacional no evento, o filme lança luz sobre um fenômeno delicado e, por vezes, desconcertante: o das crianças que se tornam pastores evangélicos, ocupando púlpitos e redes sociais com discursos que não parecem condizer com sua idade, mas que encontram ressonância num público ávido por “prodígios” da fé.
O filme acompanha por dez anos dois personagens centrais, de gerações distintas. Daniel, hoje com adulto e pai de família, vive o ocaso de sua carreira como pregador mirim, após ter alcançado, na infância, um nível significativo de notoriedade no meio evangélico. Do outro lado está João, de apenas 13, que começa a despontar no mesmo universo, com presença crescente em redes sociais e eventos religiosos país afora.
O mérito maior de Miguel Antunes Ramos está na recusa à espetacularização do tema. A Voz de Deus não cede à tentação do sensacionalismo, do julgamento, nem à caricatura fácil. O que o diretor propõe é um mergulho silencioso, atento, por vezes muito desconfortável, nos bastidores da performance religiosa infantil.
O foco está menos nas grandes plateias ou nos números digitais e mais na formação duvidosas dessas crianças como sujeitos religiosos expostos — tanto ao poder da palavra quanto às pressões familiares, comunitárias e simbólicas que moldam seus discursos.
A relação com a câmera é central. João, ainda nos primeiros passos de sua trajetória, parece natural diante das lentes, treinado para o carisma e para a construção de uma autoridade precoce. Daniel, em contraste, revela um desconforto crescente: a dúvida, a hesitação, a consciência de que a glória infantil talvez tenha sido construída sobre expectativas que não se sustentam com o tempo. É nesse contraponto geracional que o filme encontra sua potência narrativa.
A estrutura do documentário é fluida, marcada por momentos de espera, deslocamento e silêncio — o que rompe com a lógica frenética das redes sociais e convida o espectador à contemplação crítica.
A estrutura do documentário é fluida, marcada por momentos de espera, deslocamento e silêncio — o que rompe com a lógica frenética das redes sociais e convida o espectador à contemplação crítica. Não há entrevistas diretas nem narração em off; o que há é uma escuta estética e ética, um olhar que observa sem julgar, mas que também não abdica de tensionar o que se vê. Em tempos de polarizações extremas, essa escolha por um registro mais observacional torna-se, ela mesma, uma forma de resistência.
Outro aspecto importante é a presença do contexto neopentecostal, que surge não como alvo direto do filme, mas como atmosfera: o som dos cultos, as palavras repetidas, a coreografia dos gestos, os bastidores das apresentações. O que se delineia é um cenário em que a fé opera como linguagem e como espetáculo — e onde a infância, às vezes, é capturada por esse mesmo espetáculo antes que possa se constituir como experiência autêntica.
Sem paternalismo nem denúncia explícita, A Voz de Deus se apresenta como um retrato inquieto do Brasil de hoje. Um país onde a religião estrutura identidades, negocia afetos e, não raramente, engendra formas precoces de autoridade. É um filme sobre transições — da infância à adolescência, da ingenuidade ao desempenho, da fé pessoal à mediação pública — e sobre o que se perde ou se molda nesse processo.
Com essa obra, Miguel Antunes Ramos reafirma sua capacidade de construir um cinema atento ao que se transforma, silenciosamente, dentro das pessoas e ao redor delas. A Voz de Deus é, sem dúvida, um dos documentários brasileiros mais relevantes deste ano, não apenas pelo tema que aborda, mas pela forma como escolhe escutá-lo.
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