Aos poucos, a violência doméstica vai deixando de ser silenciada, principalmente porque os discursos começam a ser conduzidos por quem é a principal vítima. Integrante da mostra Foco Latino do festival É Tudo Verdade, Amando a Martha é um desses casos em que o tema ganha voz, rosto e nomes, com uma abordagem bastante corajosa.
Daniela López Osorio é uma cineasta em início de carreira. Vinda de uma família em que a avó, Martha, era o centro e cujas relações se deram a partir de sua presença, López Osorio teve na matriarca mais do que uma impulsionadora do seu trabalho, mas sua personagem principal.
Martha demorou, mas se libertou da terrível trajetória de violência doméstica que a amarrou a um casamento de 39 anos com Armando. Após muitos anos em silêncio, ela decidiu criar um diário em que relatava as agressões que sofria do ex-companheiro, além de registrar parte delas em fitas K7, algumas com a ciência de seu abusador.
Martha vê na neta e diretora de Amando a Martha a oportunidade de dar vazão ao seu sofrimento e de alertar outras gerações, tendo como ponto de partida seu seio familiar. O documentário é bastante didático em retratar os obstáculos que vítimas de violência precisam superar para saírem de seu ciclo de terror.
O discurso repetido em diferentes dos netos e filhos de Martha dá bem a dimensão da coragem da pessoa que rompe o ciclo de dor e violência.
Mesmo 15 anos após a separação, parte da família da avó ainda pressiona a matriarca para que mantenha a convivência com seu abusador. Alguns, inclusive, são contrários à realização do filme, acreditando que penalizariam Armando ao mostrarem sua real essência violenta.
Não faltam afirmações dos parentes da diretora e da personagem de que “apesar das coisas ruins”, o avô é “uma pessoa carinhosa”. O discurso repetido em diferentes dos netos e filhos de Martha dá bem a dimensão da coragem da pessoa que rompe o ciclo de dor e violência.
A montagem do documentário, que utiliza, além dos diários e das fitas K7, fotos antigas, é muito feliz. Daniela dá contornos a um sofrimento que não transparece nos sorrisos das fotos, tiradas em aniversários, jantares e demais reuniões familiares. Mostra que a dor é camuflada por diferentes razões, que vão do medo à preservação da família. Concomitantemente, as cenas no presentes e as falas de Martha são diretas, sem os trajes do medo ou do receio que podem permear a vida de vítimas de violência.
Acrescenta à narrativa proposta pela diretora que ela própria, por vezes, seja coadjuvante da história contada por sua avó. Em determinada cena, Daniela chora ao fazer uma viagem de carro a uma cidade do interior com a avó, sentindo-se ligeiramente culpada pela complexidade de sensações que estão ali dispostas: o amor a Martha, a raiva de Armando, o carinho pelo avô afetuoso, a culpa de não ter enxergado o sofrimento da matriarca. Esse desfazer de fronteiras poderia ser prejudicial em muitos casos, contaminando a narrativa proposta. Todavia, no caso de Amando a Martha, é uma estratégia que age em favor do que quer, em algumas camadas, denunciar.
Amando a Martha será exibido em São Paulo, nos dias 16 e 17, e no Rio de Janeiro, no próximo dia 18. O longa-metragem integra a mostra Foco Latino. Confira a programação completa no site do É Tudo Verdade.
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