Quando foi anunciado que o cineasta Steven Spielberg iria realizar uma nova versão de Amor, Sublime Amor, musical de 1962, vencedor de dez Oscar, entre eles o de melhor filme, muitos se fizeram a mesma pergunta: por quê? Assinado por Robert Wise, de Noviça Rebelde, e pelo coreógrafo Jerome Robbins, premiados com a estatueta de melhor direção, o original é até hoje considerado um clássico absoluto, renovador do gênero. Superá-lo, portanto, parecia uma missão impossível.
Pois, se não é sempre melhor, esse remake de Amor, Sublime Amor, já nos cinemas brasileiros, conseguiu um feito e tanto. Em vários aspectos, não em todos, essa releitura vai mais longe, e atinge resultados mais potentes do que o primeiro longa. Talvez porque Spielberg tenha feito a acertada opção de tirar das entrelinhas algo que sempre esteve na essência do musical, composto por Leonard Bernstein com letras do grande mestre do teatro cantado Stephen Sondheim, que morreu em novembro último.
West Side Story, título original da peça, estreou na Broadway, em Nova York, no ano de 1957. Seu libreto, escrito por Arthur Laurents, é livremente inspirado na tragédia Romeu e Julieta, de William Shakespeare, e transpõe a ação do clássico da Verona medieval para a Nova York dos anos 1950. Mais especificamente para a região na parte oeste de Manhattan, hoje ocupada pelo complexo cultural Lincoln Center.
À época, brancos de origem irlandesa e polonesa ali viviam às turras com a população porto-riquenha, disputando um território que ambos os grupos estavam prestes a perder para a especulação imobiliária, que os queria fora e longe de lá, para que fossem construídos imóveis destinados a uma clientela bem mais abastada.
Nesse ambiente de intolerância e racismo brota o amor entre Tony e Maria. Ele, um rapaz branco com um passado de violência, e ela, uma garota recém-chegada de Porto Rico, de onde sai para morar com o irmão mais velho, Bernardo, líder da gangue Sharks (Tubarões), sempre em pé de guerra como os Jets (Aviões), formada por jovens brancos de classe média baixa, da qual Tony fazia parte. O romance entre ele e Maria, portanto, é mais do que proibido.
Embora temas como tensão racial, intolerância, violência policial, transexualidade e gentrificação já estivessem presentes tanto na montagem teatral como no primeiro filme, Spielberg não os trata mais como pano de fundo em sua releitura. O diretor de Tubarão e A Lista de Schindler lhes dá protagonismo, porque são assuntos mais do que relevantes nos Estados Unidos de hoje.
Para isso, todo o elenco latino, sem exceção, é vivido por atores de origem hispânica, que falam e cantam em espanhol no filme. Sem legendas, por exigência do diretor.
Maria, que no filme de 1962, foi vivida por Natalie Wood, nascida na Rússia, de origem judaica e foi dublada por não saber cantar, ganha as cores latinas e o talento de Rachel Zegler, jovem atriz de musicais, filha de mãe colombiana. A opção foi acertada: ela está indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz (musical/comédia) e ao Critics Choice Awards, além de já ter sido premiada pelo National Board of Review por sua atuação.
O filme decola mesmo por conta de pertinentes atualizações feitas pelo roteirista Tony Kuchner, quando o conflito entre Sharks e Jets se agrava, e o filme ganha tons muito mais realistas e dramáticos.
Para o papel de Bernardo, que em 62 deu o Oscar de melhor ator coadjuvante a George Chakiris, descendente de gregos (?!), foi escalado David Alvarez, canadense de origem hispânica que, em 2009, ainda na pré-adolescência, ganhou o Tony de melhor ator, por sua atuação na versão para o teatro de Billy Elliot.
A única latina do elenco principal da primeira versão é Rita Moreno, também vencedora do Oscar de coadjuvante, por seu desempenho como a esfuziante Anita, namorada de Bernardo, agora na pele da espetacular Ariana DeBose, atriz e bailarina filha de pai porto-riquenho, revelada pelo super musical Hamilton.
Rita Moreno, aos 90 anos, volta à nova versão de Amor, Sublime Amor, como Valentina, criada especialmente para ela. No filme, ela é uma mulher porto-riquenha, casada com um gringo branco americano, que protege Tony, interpretado por Ansel Elgort (de Em Ritmo de Fuga), talvez a única escolha duvidosa de Spielberg – ele parece muito pouco à vontade cantando e destoa do resto do elenco.
Ainda que correta, e muito bem conduzida pelo diretor, a primeira metade desse novo Amor, Sublime Amor, na qual os personagens e a geografia do filme são apresentados, não traz nada de muito significativo que justificasse o remake. Das coreografias, muitas delas réplicas das originais de Jarome Robbins, à ambientação, aos atores, à própria trama, nada a essa altura é mais impressionante do que na versão de 1962.
O filme decola mesmo por conta de pertinentes atualizações feitas pelo roteirista Tony Kuchner, quando o conflito entre Sharks e Jets se agrava, e o filme ganha tons muito mais realistas e trágicos. As lindas canções de Bernstein e Sondheim estão lá, em excelentes orquestrações e interpretações, mas a trama se torna mais sombria, e próxima do libreto original da peça.
Spielberg mostra por que é um dos grandes cineastas americanos vivos, entregando o seu melhor filme em muitos anos, um espetáculo arrebatador, emocionante. Tudo funciona, com destaque para a fotografia do polonês Janusz Kaminski (de A Lista de Schindler), que nos devolve às cores e texturas da Hollywood dos anos 1950; e para as atuações de DeBose, Zegler e do jovem ator Mike Faist, intérprete de Riff, melhor amigo de Tony, que rouba a cena do protagonista em vários momentos.
Ainda que tenha estreado mal nas bilheterias nos Estados Unidos, talvez porque neste momento, dez dias antes do Natal, os adultos mais velhos, público-alvo do filme, não estejam ainda indo ao cinema em tempos pandêmicos, Amor, Sublime Amor é um dos melhores filmes de 2021. Está indicado a quatro Globos de Ouro, incluindo melhor filme (musical/comédia) e direção, e deve ser uma das produções com o maior número de indicações ao Oscar 2022. Porque merece e é, sim, relevante, em pleno século 21. De uma beleza que atordoa.
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