Houve um tempo em que filmes adultos passavam constantemente na Sessão da Tarde. Eram obras que já nasciam como clássicos da comédia, estrelados por grandes artistas de Hollywood. Um deles que lembro de assistir no horário da tarde é As Bruxas de Eastwick, longa dirigido por George Miller (da saga Mad Max) e que pode ser classificado por “terrir”.
Revisitar o filme de 1987 nos tempos atuais é uma chance e tanto de analisar várias coisas. Uma delas, claro, é notar o tipo de filme que circulava no horário da tarde, sendo assistido por muitas crianças. A história (uma adaptação livre do romance homônimo do escritor John Updike) narra a rotina de três mulheres na enfadonha cidade de Eastwick. Elas vivem uma vida extremamente chata e se reúnem uma vez por semana para beber drinques e lamentar.
O elenco é estelar. As Bruxas de Eastwick nos apresenta Alex (vivida por Cher), uma escultora que teve um bom casamento, mas é viúva, e hoje habita em uma casa simples com a vida adolescente, relembrando os bons momentos com o marido. Jane (Susan Sarandon) é uma contida professora de música em uma escola, embora fique sempre claro que há um fogo retido dentro dela. Seu marido a abandonou porque ela não conseguia engravidar.
Por fim, há Sukie (papel da belíssima Michelle Pfeiffer), cujo marido foi embora por ela ter filhos demais (são seis no total). Em uma das piadas presentes no inspirado roteiro, ela diz que é capaz de engravidar apenas usando a escova de dentes de um homem. Sukie trabalha como uma jornalista no antiquado jornal que faz circular as fofocas de Eastwick.
Certo dia, as amigas estão bebendo em um dia de tempestade (aparentemente, está sempre chovendo e ventando na cidade) quando começam a imaginar o homem que desejam. Alguém que seja sagaz, charmoso, bonito, mas não muito. Discutem inclusive o tamanho do pênis ideal para o dito cujo (novamente: o filme passava na Sessão da Tarde). Mal sabem elas que estão unindo seus poderes desconhecidos para evocar o tal homem. No dia seguinte, um misterioso milionário chega à cidade.
‘As Bruxas de Eastwick’: uma obra feminista?
Embora pareça difícil falar de spoilers em um filme de quase quarenta anos, fica aqui o alerta sobre algumas revelações sobre a trama. O sujeito que brota na pacata Eastwick é um homem chamado Daryl Van Horne – papel com que Jack Nicholson praticamente rouba toda a atenção para si. Afirmar isso não quer dizer que ele apaga a presença inspirada das estrelas femininas, mas sim que seu personagem é o mais instigante. Com sua persona meio debochada, mas sempre sexy, Nicholson parece ter nascido para esse papel.
Pelas óticas atuais, poderíamos então decifrar As Bruxas de Eastwick como uma espécie de filme feminista, que mostra o poder (mágico) das mulheres quando resolvem se unir contra um boy lixo.
Elas não sabem, mas Daryl é uma espécie de personificação do mal – ou uma nova versão do diabo, conforme exposto pela única moradora de Eastwick, a conservadora dona do jornal local, que começa a ficar possuída após a sua chegada, e que compara a sua presença à da serpente que seduz Adão e Eva no paraíso.
E, de fato, Daryl Van Horne é um sujeito desprezível, mas incrivelmente sedutor. A princípio, as três mulheres têm repulsa por ele (o discurso de rejeição de Cher é memorável), mas a sua alma peçonhenta encontra espaço nas fragilidades das três para, por fim, engoli-las para o seu mundo.
Cabe aqui mais uma pérola do roteiro. Ao ser questionado por Alex sobre por que não é casado, Daryl dá a seguinte explicação: “Eu não acredito nisso. Casamento é bom para o homem, péssimo para a mulher. Ela morre, sufoca. E então o marido sai por aí reclamando que está transando com uma morta viva, sendo que foi ele que a matou” (tudo isso na Sessão da Tarde…).
Ou seja, temos aqui um filme que se resume em três mulheres frustradas que são seduzidas por um homem poderoso que lhes oferece o mundo, tal como um Barba Azul no interior dos Estados Unidos. Ele promete a elas um mundo fantasioso e até meio ridículo, em que elas voam livremente em sua mansão e ocupam sua cama cheias de tesão (as três ao mesmo tempo). Mas, aos poucos, começam a notar que algo está errado.
Ao sentir que há algo estranho desde que Daryl chegou à cidade – o que culmina na morte da única pessoa que desconfiava dele –, as três resolvem desaparecer do seu raio. O milionário, tal como uma criança, fica em sua mansão jogado, remoendo a rejeição, enquanto comanda pequenas vinganças a elas, baseadas nas suas maiores fragilidades. Jane, que tem medo do tempo passar muito rápido, começa a envelhecer; Alex, que tem pavor de cobras, acorda em uma cama cheia delas; Sukie, que não suporta dor, vai parar no hospital com uma doença inexplicável que pode matá-la.
Pelas óticas atuais, poderíamos então decifrar As Bruxas de Eastwick como uma espécie de filme feminista, que mostra o poder (mágico) das mulheres quando resolvem se unir contra um boy lixo. Mas há mais camadas aqui. Uma delas é o fato de que a vida das três gira, aparentemente, em torno dos homens – o que se sinaliza no fato de que, quando estão juntas, elas estão falando mal deles ou desejando um macho ideal. Não há exatamente empoderamento aqui (a crítica da Vulture brincou: o filme jamais passaria no teste de Bechdel).
Por último, há o final algo enigmático (que não tratarei aqui), mas que deixa em aberto o encerramento dessa história à interpretação do espectador, conforme seu repertório. As três amigas são maiores que Daryl ou não? Elas o superaram ou seguem submissas a ele? Há várias leituras possíveis. Mas o que é possível dizer que, quase quatro décadas depois, As Bruxas de Eastwick segue delicioso e instigante. Não se fazem mais filmes da Sessão da Tarde como antigamente.
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