Trinta anos após o último capítulo de Mad Max (Além da Cúpula do Trovão, 1985), George Miller decidiu colocar em prática o roteiro que já agonizava em sua gaveta. Se havia algum receio que os problemas encontrados durante a realização viessem a atrapalhar a qualidade do longa, fiquem tranquilos. Mad Max: Estrada da Fúria não apenas faz jus aos três anteriores, como apresenta um potencial imenso de ser o melhor filme de ação do ano.
A verdade é que a espera valeu a pena. Tom Hardy (o vilão Bane, de Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge) assume o lugar de Mel Gibson, e empresta sua voz rouca e toda confiança na construção de Max Rockatansky. Charlize Theron (Monster – Desejo Assassino) entrega mais uma atuação firme e marcante, chegando, inclusive, a roubar a cena no longa-metragem.
Uma das maiores virtudes do filme é não criar laços tão intrínsecos com os longas anteriores que pudessem tornar Estrada da Fúria inacessível ao público que não os tenha visto. Na tela, trinta anos depois, somos colocados diante do mesmo cenário pós-apocalíptico, desértico e de sol escaldante.
Nos anos que antecederam o lançamento, Miller fez questão de inúmeras vezes salientar que o roteiro que tinha em mãos era muito bom, justamente o que não permitia a desistência do projeto.
Na busca de reinventar a franquia – e, por que não, a própria carreira -, projetou tudo em storyboards antes de dar início a escrita do roteiro. Convidou Brendan McCarthy (criador do HQ Freakwave, inspirado em Mad Max 2) e Nico Lathouri (Mad Max) para escreverem a história com ele.
A disputa já não é por água, combustível ou mesmo a sobrevivência. Chegamos no ponto em que o grande propósito de Immortan Joe é a perpetuação de sua linhagem. O cenário do mundo desértico, enlameado e repleto de corvos diz muito sem dizer nada.
O roteiro torna perceptível a evolução (em especial para quem tenha assistido aos outros filmes da franquia) pela qual passou o mundo pós-apocalíptico. A disputa já não é por água, combustível ou mesmo a sobrevivência. Chegamos no ponto em que o grande propósito do vilão é a perpetuação de sua linhagem. O cenário do mundo desértico, enlameado e repleto de corvos diz muito sem dizer nada.
A narrativa construída pelo trio leva o espectador ao ano de 2060, quando, após uma série de catástrofes, a civilização como a conhecemos desaparece. Tom Hardy interpreta Max, um ex-policial que teve a família morta durante o início deste colapso mundial. Ele vive atormentado pelo seu passado e leva a vida evitando criar relações.
Somos conduzidos à compreensão deste contexto quando ele é capturado por um grupo de rebeldes e levado para Cidadela, uma porção da terra liderada pelo tirano Immortan Joe (o indiano Hugh Keays-Byrne, de Mad Max), uma quase divindade que controla a todos mantendo em seu poder uma quantidade inesgotável de água. Escravizado, Max tem que lutar por sua vida.
O personagem de Charlize Theron, Imperatriz Furiosa, é uma mulher esgotada emocionalmente e sem esperança – ou sem o direito de poder sonhar com um futuro – que decide trair Joe fugindo com as cinco esposas dele, ferramentas na estratégia insana do tirano para repovoar o mundo. É nesse momento que vemos retornar com brilhantismo a ação da franquia (mesmo que os veículos não sejam tão hipnóticos como os dos longas anteriores), com batalhas quase medievais e anárquicas entre Max, Furiosa e os Garotos da Guerra, crias da mente inescrupulosa e doentia de Immortan Joe.
Aliás, é um dos Garotos da Guerra, Nux (Nicholas Hoult, de Um Grande Garoto e do seriado Skins), o ponto chave na trama, apresentando um arco narrativo complexo, coisa rara no cinema de ação. Ele acredita no pós-vida e que veio ao mundo com uma única missão: ser memorável honrando seu mestre. Seu fanatismo o faz crer que esta é a única forma de conseguir entrar em Valhala, uma espécie de paraíso destinado aos homens fortes e corajosos. A delicada atuação de Hoult, criando um personagem ao mesmo tempo terno, violento e obsessivo, é outro aspecto positivo neste retorno de Miller ao cinema de ação.
Cada elemento parece minuciosamente escolhido, de forma a aguçar a curiosidade e prender nossa atenção, como as referências aos grupos extremistas, as guerras de poder e alianças escusas, e a mitologia nórdica e celta que, além de enriquecer a obra, mostra como diretor e roteiristas estavam afiados com a nossa realidade e com uma construção narrativa ímpar. O freak show construído através da direção de arte e figurino corroboram para prender nossos olhos à tela.
Há ainda a interessante abordagem feminista, na qual somos guiados de uma visão redutora e erótica das mulheres até seu empoderamento. Notem que, em Mad Max: Estrada da Fúria, elas nunca são vítimas, ao contrário, assumem o protagonismo. Breves pinceladas de niilismo e uma bela provocação do cineasta ao público.
Miller, McCarthy e Lathouris emprestam seus sensos estéticos apurados e imaginações férteis na construção de um dos melhores filmes do ano. Mais do que tiros, socos e explosões, Mad Max: Estrada da Fúria mostra que bons roteiros são capazes, por si só, de construir ótimos filmes.
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