Até quando o cinema vai tentar explicar a essência humana? Será que algum dia as grandes telas irão simplesmente parar de especular e conjecturar a respeito de por que somos como somos e o que faz parte da naturalidade da espécie? Enquanto existirem filmes que debatam isso de maneira tão precisa quanto Assassinos por Natureza, de Oliver Stone, eu espero que não.
Com história concebida por Quentin Tarantino (que dúvida), e escrita pelo próprio Stone, David Veloz e Richard Rutowski, o filme acompanha a vida de Mickey Knox (Woody Harrelson), e sua, por assim dizer, esposa de sangue, Mallory (Juliette Lewis). Brutais assassinos em massa, o casal promove sua carnificina enquanto é perseguido pela polícia do país inteiro e gera uma cobertura avassaladora da mídia nacional.
Não se trata de um filme de assassinos, nem de perseguições. Estamos falando aqui de um longa sobre a incessante, por vezes até impossível, busca pela própria essência. O que se entende por Mickey e Mallory são duas pessoas que querem, apenas, cultivar sua intimidade unidos por aquilo que nasceram para fazer: matar pelo prazer de matar. Oliver Stone retrata com crueza e ainda justifica a premissa de seus personagens, constantemente associando-os a animais que agem por instinto, com planos de répteis, insetos e mamíferos justapostos ao casal, em montagem por vezes construtivista de Hank Corwin e Brian Berdan. Entretanto, Stone revela um teor de condenação às atitudes de seus protagonistas, inclinando o eixo de sua câmera, indicando a “personalidade torta” dos assassinos.
Oliver Stone não só faz belos contrapontos estéticos, como também é enfático ao criar uma dualidade entre arte e entretenimento.
Apresentando toda sua riqueza ideológica e estética, o longa é contado sob duas óticas, absolutamente opostas, mas determinantes para seu conflito: como a sociedade enxerga Mickey e Mallory versus a intimidade nua e crua do casal. O olhar externo, que incentiva o julgamento, é narrado por meio dos olhos da grande mídia, revisitando gêneros da televisão, como o sitcom e o telejornal.
Ironia e sensacionalismo barato dão a tônica de como o casal é interpretado, como se utilizar de um programa de comédia, sarcasticamente intitulado “Loving Mallory”, para retratar a relação da moça com sua família, sexualmente abusiva e fortemente repreensiva, o que culminaria no brutal assassinato de seus pais.
Por outro lado, as idiossincrasias e momentos de puro sentimento dos criminosos são verdadeiras homenagens ao cinema. A intimidade de Mickey e Mallory remete a gêneros como terror clássico, western e até mesmo a vanguardas como o surrealismo e o cinema underground americano, similar ao que Tarantino ajudaria a fazer dois anos depois, em Um Drink no Inferno. É como se a idealização da sensualidade e desejo da personagem de Juliette Lewis fosse tirada de trabalhos de cineastas como David Lynch e Maya Deren. Com isso, Oliver Stone não só faz um belo contraponto estético, como também é enfático ao criar uma dualidade entre arte e entretenimento.
Não satisfeito, o cineasta insiste nas antíteses visuais para fortalecer seu conflito. Assassinatos brutais, reflexões e grandes realizações dos foragidos são quase sempre em preto e branco, na tentativa de transmitir a maior crueza possível, de algo tão puro e natural, que só pode ser artificialmente colorido caso seja em tons de verde e vermelho, unindo natureza humana ao perigo. A lógica só fica completa ao passo que os programas de TV, principalmente na figura do jornalista Wayne Gale (Robert Downey Jr.), ganham cor, normalmente com tons exagerados e luz estourada, expressando a “natureza fabricada” que a mídia realiza. Com seus cortes propositalmente toscos e alternância desgovernada de tonalidades, a estética do filme tem sua genialidade justamente por ser tão rudimentar.
Assassinos por Natureza não cria heróis ou demônios, nem tenta cravar o que é certo ou errado. O longa de Oliver Stone apenas sugere que, por mais que haja uma tentativa de massificação comportamental por parte da mídia, a natureza humana é variável, insuperável, e, para muitos, incompreensível. Já se vão 24 anos desde seu lançamento, mas sua atualidade é inegável. Afinal, nada mais 2018 que um quarto de motel que se transforma em televisão, não é mesmo?
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